O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e o presidente da Câmara, Arthur Lira, durante entrevista após reunião na residência oficial da presidência do Senado.Haddad e Lira: equilíbrio frágil - Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Lira tem dois senhores

O presidente da Câmara precisa falar com o deputado mediano, que tem um eleitorado conservador, e com o governo, que controla os recursos
14.12.23

Há um comportamento dúbio do presidente da Câmara Arthur Lira (PP/AL) que está se refletindo na forma como as agendas econômicas de interesse do governo caminham em Brasília. O caso da Medida Provisória (MP) 1185, que o governo escolheu como vital para sua sobrevivência fiscal em 2024, ilustra exemplarmente como não é possível julgar nem livros e nem políticos pela capa e como a governabilidade no Brasil caminha no fio da navalha.

A medida é complexa e envolve a cobrança de tributos sobre isenções fiscais estatuais. Mas essa questão é apenas o pano de fundo para entender o equilíbrio – precário – das relações entre Executivo e Legislativo nos dias de hoje. Considerando que a MP é impopular, pois aumenta impostos, e entendendo que o governo não tem base consolidada, sabe-se que sua aprovação só é possível a partir da ação da cúpula do Congresso.

A partir daí começa um fluxo de sinais trocados que confunde quem observa de fora. No início da semana, Lira “fala informalmente” com jornalistas listando uma sério de problemas na MP e no status da relação entre o governo e o Congresso, da falta de cumprimento de acordos, dificuldades do texto e coloca em dúvida o cronograma. Nos bastidores, no entanto, técnicos da Câmara afirmam que a negociação, feita diretamente entre o gabinete de Lira e o de Fernando Haddad, caminha muito bem, obrigado, e que um consenso está próximo.

Analistas mais apressados podem dizer, num contexto puramente venal, que Lira está valorizando seu passe e formando preço político. É isso também, mas há algo mais sutil e sofisticado que indica um trabalho de equilibrista.

O fato é que Lira tem dois senhores. Um é o deputado mediano da Câmara, que é um sujeito que, embora seu partido esteja formalmente no governo, tem dificuldade de se comportar como governista porque seu eleitor é originalmente mais conservador. O outro é o governo, que controla os recursos que são combustível político que Lira usa exercer influência sobre seus pares, como cargos, timing de liberação de emendas e capacidade de aprovar interesses em políticas públicas.

Hoje, a cúpula do Congresso – envolvendo também o entorno da dupla Rodrigo Pacheco (PSD/MG) e Davi Alcolumbre (União/AP) – exerce muito poder no governo Lula e tem pouco do que reclamar quando se pensa em acesso aos recursos controlado pelo Executivo. Mas, se tem pouco a reclamar, por que reclama? Porque é preciso manter a aparência de independência para o deputado mediano, pois seu controle é a grande arma de pressão com a qual Lira ameaça o governo e consegue, assim, acesso aos recursos controlados pelo Planalto.

É curioso que, por seu lado, Lula também precisa falar mal do Congresso para manter as aparências e seu eleitor mobilizado. Ele faz isso diretamente, chamando parlamentares de raposas que cuidam do galinheiro, por exemplo, e indiretamente, via PT, que acusa o Centrão de criar dificuldades importantes. Mas também não há, da sua parte, interesse de rompimento de relações.

Mas nem tudo é pirotecnia. Esse jogo tem implicações reais no desenho das políticas. Lira aprova as pautas contratadas pelo governo, mas lhe impõe a liberdade de fazer alterações como uma maneira de contemplar também interesses existentes na Casa. O resultado é que mesmo que a agenda fundamental da Fazenda venha sendo aprovada, isso acontece com muita desidratação. No caso da MP em questão, a previsão inicial de arrecadação era de 35 bilhões de reais. Com as mudanças feitas pela Câmara, segundo a consultoria Warren Rena, o potencial de caiu para cerca de 11 bilhões de reais.

Outro exemplo é a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO). Após uma verdadeira novela, o governo comemorou a aprovação de um artigo que retira 5 bilhões de reais da meta fiscal para o PAC e uma (frágil) autorização tácita para criar um teto informal de economia que ele será obrigado a fazer em 2024. Entretanto, terá que encarar um indigesto cronograma de execução de emendas que, na prática, anula sua principal arma atual para barganhar apoio com deputados e senadores, que é o controle do timing de execução das despesas alocadas pelo Congresso. Agora, o Planalto terá que definir um cronograma de execuções e cumpri-lo.

É claro que o desenho institucional dos países deve ser flexível para acomodar variações ideológicas e características próprias do tempo e das circunstâncias. No caso do Brasil, a eleição de um Congresso e de um presidente distantes ideologicamente criou uma dinâmica de competição, em primeiro lugar, mas com uma reconhecida e custosa interdependência em segundo. Duvida-se que essa possa ser uma situação que tenha muita sobrevida por causa do seu alto custo político. Esse equilíbrio frágil só se sustenta enquanto Lula tiver popularidade de um lado e houver recursos para sustentar a relação venal por outro. Quando uma dessas duas forças fraquejar, nem o equilibrista Lira será capaz de impedir que alguns pratos caiam no chão.

 

Leonardo Barreto é cientista político e diretor da VectorRelgov.com.br

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  1. Por isso defendo o parlamentarismo com voto distrital, ainda que o Lira seja escolhido o primeiro ministro. Assim a cara dele fica na vitrine e o povo passa a escolher melhor deputados e senadores. Sem contar que só há governo com maioria, senão, novas eleições.

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