Fronteira via Wikimedia Commons

Em defesa das canções simples

Quando uma música de George Harrison cantada por Paul McCartney representou um momento de necessária leveza em meio ao peso vulgar do noticiário
14.12.23

Gosto de muitas canções suas, mas nunca fui um fã – nem dele, nem de sua famosa banda. Foi minha mulher que insistiu para irmos ao show, acrescentando mais um item à inesgotável lista de experiências maravilhosas que só tive porque vivo ao lado dela: uma filha, um filho, seis gatos (três já se foram…), veraneios em Pântano do Sul, duas viagens à Celanova (cidadezinha da Galícia onde minha mulher tem parentes e onde há um belíssimo mosteiro barroco) e agora um show de Paul McCartney.

O ex-Beatle já era mencionado no subtítulo e, mesmo que não fosse, seria fácil de adivinhar. Mas não adiei a revelação do nome para criar falso mistério: quis, antes, demonstrar reverência ao autor de parte considerável da trilha sonora do século 20. Também no show a presença do astro octogenário no palco foi antecipada por um vídeo que revisava, em fotos e trechos de músicas, seu longo currículo, dos Quarrymen aos Beatles ao Wings à carreira solo.

Em duas horas e meia, Paul nos presenteou com uma seleção de suas mais belas criações, da inevitável e irresistível Get Back à menos conhecida mas deliciosa Come On to Me. Live and Let Die foi sonora e visualmente avassaladora. Minha reticência em relação a duetos com gente morta foi vencida no bis, quando Paul cantou I’ve Got a Feeling com John Lennon no telão. E me entreguei ao momento catártico (que o estagirita me perdoe o uso frouxo da palavra!) que é cantar, com a multidão, o “na, na, na” de Hey Jude.

A maior emoção da noite veio, de forma imprevista, com uma canção dos Beatles que nunca havia me tocado dessa forma antes: Something. Paul homenageava o companheiro de banda George Harrison, autor da música, que morreu de câncer em 2001. Imagens do mais riponga dos Beatles em sua juventude tomaram o fundo do palco. Aquela guitarra plangente, aquelas fotos em preto e branco botam a gente comovido como o diabo.

Este ano que se aproxima do fim foi, para mim, cansativo, acidentado, repleto de altos e baixos. Tudo isso terá pesado no estado emocional que a música de Harrison despertou em mim. Eu talvez tenha chorado. Ou talvez fosse a chuva que começou a cair sem relento sobre o estádio Allianz pouco antes do início do show e só parou quando já estávamos de volta em casa.

***

As canções populares parecem nos encontrar no instante em que precisamos delas. Mais exigente, a literatura costuma chegar ou muito cedo, ou muito tarde (o que significa que só existe um momento certo para ler um grande livro: o momento exato em que o estamos lendo).

Algo no estado de espírito um tanto melancólico em que imergi nos últimos meses ansiava por Something. E então Paul McCartney tocou a música para mim (e para mais umas dezenas de milhares no estádio). Desde então eu a tenho ouvido todos os dias.

É uma ilusão, claro. Se às vezes uma canção banal parece falar à nossa alma, será talvez porque a música pop aceite que lhe sejam atribuído sentidos que ela não carrega por si própria. É difícil encontrar na letra de Something algo que corresponda à emoção que a música me despertou no show de Paul – até porque também é difícil definir esse sentimento difuso.

Talvez eu o encontre neste verso do refrão: “I don’t want to leave her now” (não quero deixá-la agora). Ao ouvir Something em um tributo póstumo, não pude deixar de pensar que todos um dia deixaremos as pessoas que amamos. O jovem músico cujas imagens apareciam no fundo do palco já as deixou.

***

Shows não são temas típicos desta coluna, e nem o colunista costuma frequentá-los. Mas Paul se impôs como um refresco em meio ao calor da vulgaridade que nos cerca.

Poderia ter falado, digamos, do bate-boca entre o ministro petista e a deputada bolsonarista e da invasão à rede social da primeira-dama. Ou de Gaza arrasada e do afundamento de Alagoas. Mas a gravidade dos dois últimos temas está além das forças que me restam neste ano, e os dois primeiros renderiam só mais uma crônica do bestiário político nacional (gênero no qual já me exercitei e ao qual devo voltar – mas não hoje).

Paul ainda traz a vantagem de ser um artista, digamos, não polarizante. Não é ostensivamente político. De forma discreta, defende uma causa que lhe é cara, os direitos dos animais. Um folheto entregue na entrada do estádio divulgava a “segunda-feira sem carne”, que me parece uma ideia até bem simpática (embora eu não a pratique…).

Que os leitores sérios e graves me perdoem: eu precisava de um pouco leveza.

***

Em Juventude, filme de Paolo Sorrentino, Michael Caine interpreta Fred Ballinger, um compositor erudito que passa uma temporada em um spa nos Alpes Suíços. Junta-se a ele na montanha mágica o ator Jimmy Tree (Paul Dano), que se tornou conhecido pelo papel de robô em um filme bobo, mas tem pretensões artísticas maiores. Ballinger acaba de recusar um convite oficial da coroa britânica para reger sua série Simple Songs (Canções Simples) em um concerto em homenagem ao príncipe Philip, que muito aprecia essas peças (Philip e a rainha Elizabeth ainda vivam em 2015, quando o filme foi lançado).

Ballinger tem razões muito pessoais para não reger Simple Songs, mas Tree supõe que essa recusa parte de princípios estéticos. Ele lamenta que Ballinger tenha ficado conhecido por sua música menos elaborada, assim como ele mesmo só é lembrado por “um maldito robô”. Os dois foram punidos, diz Tree, por se permitirem “um momento de humor ligeiro”.

A palavra em inglês que traduzo como “humor ligeiro” é “levity”, que tem a mesma origem latina do nosso “leveza”. Na contramão das convicções de Tree, Juventude de certa forma faz a defesa do humor leve. Na última cena, ouvimos Simple Song #3, de Ballinger (na verdade, composta especialmente para o filme pelo americano David Lang), uma obra de sublime melancolia, mas ainda assim leve.

Something também é uma canção simples.

 

Jerônimo Teixeira é escritor e jornalista

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
  1. Jerônimo, muito obrigado pela leveza de texto. Refrescante, um verdadeiro oásis neste nosso dia a dia tão massacrante. Beatlemaniaco que sou, fez-me reviver a nossa gloriosa juventude.

  2. Gostei, Jerônimo. Penso que quando uma canção nos emociona e faz os pelos arrepiarem, ela atingiu seu objetivo. O compositor passa a morar em nosso coração, ainda que não consiga mais repetir o feito com outras músicas. Entramos numa sincronia, num uníssono raro que lembra a paixão.

  3. Pena que não li essa coluna há uma semana atrás. Desdenhei o show do Paul aqui em Curitiba, que aconteceu esta semana (quarta-feira). Achei que a muvuca não compensaria. Já não tenho o vigor de um teen ... enfim talvez eu decida ir no show do Eric Clapton (mas diz que é meio polemico como Waters).

  4. Se lhe agrada a simplicidade em canções e Something, em particular, ouça a versão que Paul toca a mesma Something apenas no ukelele, instrumento dominado por Harrison, e em homenagem a ele.

Mais notícias
Assine agora
TOPO