A Catedral da Sé, em São PauloA Catedral da Sé: cidade tem nome de santo ranheta - Foto: Governo de São Paulo

Um passeio pela zona inóspita

A cidade de São Paulo nasceu ali, e vista dali parece estar moribunda, tal qual o ano que vai se acabando – este ano que nasceu velho
14.12.23

Sábado último, à noitinha, estive pela Praça da Sé para encontrar, entre outros amigos, meu colega de Crusoé Josias Teófilo e ir ao lançamento de um livro. Cheguei, como é meu hábito deplorável (para mim e para os que me convidam), cedo demais; o lugar onde o lançamento ia acontecer ainda estava fechado, de modo que tive que matar o tempo numa zona hoje inóspita de São Paulo. Às seis da tarde de sábado não há muito o que fazer por ali se você não quiser comprar bijuterias, roupas e calçados de má qualidade ou traquitanas eletrônicas chinesas que quebram à toa. Circulei pelo entorno meia hora ou pouco mais; depois tomei o rumo do lugar aonde ia, que, felizmente, já estava aberto.

De caminho para lá passei pela Rua XV de Novembro e entrei na Rua Anchieta, que é curta, do tamanho de um quarteirão, e dá no Pátio do Colégio (que nos mapas e nas placas vem grafado como Pateo do Collegio). Lá, suas esquinas são formadas pelos belos edifícios antigos do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (que já foi da Bolsa de Mercadorias) e da Procuradoria-Geral da cidade de São Paulo, cujo térreo sedia o Procon. Uns passos adiante está o Viaduto Boa Vista, sobre a Ladeira General Carneiro, de onde se vê o infame Impostômetro, o placar estrepitoso – quase três trilhões a zero – do jogo entre nós e a sanha arrecadatória do governo.

A cidade nasceu ali, e vista dali parece estar moribunda, tal qual o ano que vai se acabando – este ano que nasceu velho. O endereço onde eu ia era na Rua Roberto Simonsen, um pouco adiante (para quem vem dos lados do Pátio para a Sé) da Casa Número Um e do Solar da Marquesa de Santos, mas antes da esquina da Venceslau Brás. Meu caminho me fez passar diante dos edifícios gêmeos da Secretaria da Justiça (que já foram a sede da Polícia Civil) e cruzar a antiga Rua da Fundição, hoje Floriano Peixoto, em cuja esquina está, coberto por tapumes e oferecido para aluguel, o prédio que já foi a sede dos Correios da Capital. Metido entre os museus, ambos meio mequetrefes, e prudentemente fechado com grades, está o Beco do Pinto, que descia antigamente até a várzea do Tamanduateí e hoje chega até perto do Parque Dom Pedro II.

O silêncio do logradouro no sábado à noite é tristonho: não se imagina que se trata de uma rua do antigo coração de São Paulo. Lembrei de outras noites de sábado, nos tempos de infância, quando passava por aquela mesma região levado pela mão do pai e tudo eram luzes, movimento, lojas e restaurantes, e não havia quem nem o que temer. Agora não há nada aberto, exceto o lugar aonde eu ia, um restaurante nos altos de um prédio antigo e reformado. Não há trânsito: nenhum ônibus passa ali, nenhum veículo particular ali se aventura. Não há passantes, ou, melhor dizendo, os há raros, e, desses, a maioria é dos tristes que por ali vivem. Esses, quando passam, quase sempre são ruidosos: gritam, pisam duro, arrastam e batem coisas no chão, nos postes. É noite, mas não há coruja que pie. Por volta das dez da noite, diz nosso anfitrião, a rua ganha vida, pois o prédio de número 87 dá lugar a uma “balada”: por essa hora, e até a madrugada, volta a haver movimento de gente e de veículos. Mas isso é só duas noites por semana; nas demais, é só desolação.

Junto com a Boa Vista, a rua é uma das bordas, a norte, do triângulo de ruas que formam a colina histórica da cidade. Nosso anfitrião comentou conosco os eventos de 7 de setembro de 1822, tempo em que o país era menor e os homens eram maiores: Pedro I recebido no Palácio do Governo, que ficava onde hoje é o Museu do Pátio do Colégio, e à noite ovacionado aos gritos de “Viva o Rei do Brasil!” na Casa da Ópera, que ficava colada ao Palácio. Consta que Pedro tocou ao piano o “Hino da Independência”, aquele que diz que “já raiou a liberdade no horizonte do Brasil”, que nos manda zombar dos grilhões e que nos pede que não temamos face hostil.

Na sacada estreita sentíamos o vento frio, e com ele não vinha nem eco daqueles tempos, nem sopro da voz daqueles homens, nem o calor daquela coragem. Não: noite, noite e o riso de algum fantasma me mandando guardar a pena da galhofa e usar só a tinta da melancolia.

* * *

Agora que 2023 vai se tornando o ano velho a quem, segundo aquela canção que quase ninguém mais canta, logo daremos adeus, agora, eu dizia, foi que me dei conta de que esse ano já nasceu meio enrugado, meio encanecido, meio reclamando de lumbago, com a vista fraca, a memória falhando, repetindo histórias (ou a História). E nasceu, o que não é comum com ano novo, saudosista, revivendo coisas de outros anos: 2002, 2006, 2010, por aí.

Diante disso, arrisco a opinião de que 2024 (e também 2025 e 2026) será 2023 disfarçado, apesar de mais envelhecido, mais gagá, mais retrô – mais vintage, digamos – do que nunca. Um ano, outro ano que já vivemos várias vezes antes.

 

Orlando Tosetto Júnior é escritor

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  1. O centro antigo de São Paulo é potencialmente lindo e charmoso. Mas tem sido completamente desprezado pelos nossos governantes. A recuperação de um centro como esse faria a alegria suprema de urbanistas de Paris ou Londres. Mas, infelizmente, são pessoas bem menos capazes que hoje decidem sobre ele. E sem qualquer vontade também.

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