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A motosserra de Milei

O argentino é um prato cheio para a imprensa reducionista brasileiro. E uma novidade real no cenário latino-americano
14.12.23

Há um velho ditado que diz: se você deixar a Argentina e retornar em 20 dias, tudo terá mudado. Se retornar em 20 anos, nada terá mudado.

Javier Milei assumiu no último domingo o pior emprego do mundo, o cargo de presidente argentino, com a missão de dar um basta na atual situação.

Em um país acostumado aos grupos de interesse, fortemente fermentados pelo trabalhismo, Milei se elegeu prometendo “passar a motossera” em “tudo isso que está aí”.

À primeira vista, Milei é mais um dos expoentes “antipolítica”. É o que nossa imprensa nacional, acostumada a noticiar tudo que chega via WhatsApp de “fontes do Planalto”, e que acredita que o mundo se resume a um corredor em Brasília, tentará emplacar.

Mas a realidade é um pouco distinta. Ela exige, para além de um olhar histórico, entender que o Brasil não é uma proxy de qualquer país no planeta. Existem estruturas e instituições diferentes das nossas, ainda que, em se tratando da Argentina, muitas delas sejam bastantes parecidas.

Milei não é exatamente um voto cansado, ainda que tenha contado com bom apelo junto aos mais jovens, tradicionalmente revoltados contra a situação (seja ela qual for). Milei é, acima de tudo, alguém que entende conceitos básicos, e muitos conceitos avançados, no jogo econômico.

É importante, portanto, entender que sua gestão não será um bravateio sem fim, com motociatas para relaxar enquanto algum ministro faz o trabalho. Milei deve se envolver diretamente, e será a alma de uma transformação radical.

Mas afinal, o que exatamente precisa mudar?

Filha prodígio do império espanhol, a Argentina “saiu da casa dos pais” em 1810, vivendo então um século de estabilidade ainda imbatível entre os pares latino-americanos.

Ao contrário do México, o país viveu sob uma constituição liberal, com forte apelo cosmopolita, atraindo investimentos estrangeiros desde os seus primórdios.

Esse feito ajudou a consolidar a “terra da prata” como uma potência global. De fato, a Argentina possuía aquilo que faltava na Europa: estabilidade e terra fértil. Era um casamento quase perfeito, em especial nas décadas que antecederam a revolução verde, que tornaria mesmo territórios inóspitos como o Centro-Oeste brasileiro produtivos.

Como os europeus, a Argentina também possuía uma educação bastante ampla já no início do século 20. Não por coincidência, o país possuía um PIB per capita seis vezes maior do que o brasileiro, contra os atuais 1,2 vezes maior.

Mas, claro, nem tudo era perfeito. O país possuía uma forte concentração de terras, o que ajudaria a fomentar a onda que tornou a Argentina um caso único no mundo, de país que saiu do status de “desenvolvido”, para subdesenvolvido.

A concentração de terras e os grupos de interesse foram cruciais em apoiar o primeiro golpe no país, nos anos 1930, que contou ainda com a instabilidade global da crise de 1929.

Em consequência, a Argentina viveria dali em diante cinco golpes de Estado, além de três ditaduras.

Nesse intervalo, o país elegeu Juan Domingo Perón, um caudilho que governava sob o voto popular.

Perón não criou as instituições podres que sustentam a Argentina, ou seja, as instituições “extrativistas”, mas as tornou um “way of life”.

Tendo assumido o poder logo após o fim da Segunda Guerra Mundial, Perón possuía uma forte entrada de dólares para gerir. E o fez da maneira mais latino-americana possível. Incentivou o consumo, deixou de lado poupança e fatores do tipo, e tratou de garantir que ele, o presidente, fosse a figura central que determinaria quem recebe o quê.

Desde então, a Argentina vive entre lapsos de reformas e a volta a essa gestão pautada na figura do presidente tentando garantir quem será beneficiado.

Por óbvio, quando cabe ao presidente definir privilégios, a tendência é que a situação econômica rume em direção à ruína. E o motivo é relativamente simples. A economia deixa de ser sobre benefício mútuo, algo que ocorre, por exemplo, via comércio, e passa a ser sobre “dar a Pedro o que é de João, prometendo a João o que é de Antônio”.

Em termos bastante resumidos, esse é o caso argentino.

O primeiro desafio de Milei, portanto, será garantir que João e Pedro não consigam tirá-lo do cargo. E essa é uma tarefa bastante difícil.

Milei conta com o apoio de Macri, o único presidente não peronista a concluir seu mandato desde que Perón chegou à Casa Rosada.

Mas Milei terá de fazer mais do que simplesmente se manter no cargo por quatro anos.

Ele terá de corrigir uma série de distorções que passam, em essência, pelo orçamento público.

Neste momento, a Argentina possui um déficit público de 3% do PIB. Mas a situação não para por aí.

Como o país não possui um mercado de capitais ativo, toda a dívida pública é financiada ou por dívida externa, ou por impressão de dinheiro. O objetivo de zerar o déficit, portanto, é crucial para acaba com a impressão de dinheiro que leva à desvalorização do peso e à inflação.

No plano de Milei, o ponto mais relevante é reduzir os subsídios para energia. Neste momento, uma família do bairro rico de Palermo, em Buenos Aires, paga apenas 15-20% da sua conta de luz. O restante fica por conta do Orçamento público.

Este custo pode chegar a 2% do PIB no total.

Mas, para além da energia, os subsídios também estão no transporte público, no gás, na água e em tudo o mais que possa garantir votos.

Resolver essa pendência e migrar para um cenário como o brasileiro, onde os subsídios são direcionados para os mais pobres e estão inclusos na conta de luz, não no orçamento, será um desafio hercúleo.

Há outros desafios, como o fato de que neste momento a Argentina depende da China para importar produtos. Isso pois, uma vez que não possui dólares, a Argentina depende de uma linha de crédito em yuan, a moeda chinesa.

Por mais estranho que pareça, porém, os argentinos votaram por isso. É difícil encontrar paralelos, especialmente no Brasil. E especialmente no Brasil de 2023.

Mas é compreensível que o país ainda mantenha algum senso crítico para entender que não irá curar a ressaca bebendo mais.

A grande dúvida será se os argentinos entenderam de fato o que irá ocorrer em 2024. O país terá mais inflação e uma recessão. O que já era previsto, independente do governo, pode ficar pior antes de melhorar.

Na prática, os argentinos irão descobrir o que o Brasil descobriu em 2015. Que colocar o governo para pagar a conta no posto de gasolina não é algo eterno. E quando deixa de ocorrer, o resultado é um desastre, ainda que temporário.

Seja como for, o Itaú BBA publica, todo dia 23 ou 24 do mês, um relatório resumido sobre a situação fiscal no país vizinho. Se você é destes que prefere ler os números, e não as manchetes, prepare a pipoca e confira as cenas dos próximos capítulos.

 

Felippe Hermes é jornalista

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  1. Argentinos precisarão engolir seco e passar pelas turbulências que virão, mas se Milei estiver fazendo o melhor, ele terá apoio daqueles que entendem de mercado. Vamos esperar...boa sorte aos "hermanos"!

  2. é falso que os subsídios estão direcionados para os mais pobres. basta ver o que é a zona franca de manaus e todos os benefícios para determinados grupos de interesse na reforma tributária.

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