Usina de energia termelétricaUsina termelétrica: mercado garantido pelos jabutis - Foto: Welp Combustíveis/Divulgação

Um choque de anticapitalismo

A regulação do setor elétrico deveria garantir segurança aos brasileiros no fornecimento de energia, mas cada vez mais garante demanda e lucros aos amigos de quem faz as leis
14.12.23

Na primeira década do século de 1900, o diretor-geral de saúde pública do Rio de Janeiro Oswaldo Cruz lançou uma campanha para a eliminação de ratos, em  combate à peste bubônica. A iniciativa previa recompensa financeira a brasileiros que matassem e apresentassem os ratos mortos às autoridades.

A medida, que pretendia ajudar a sanear um problema de saúde pública, rapidamente se tornou um lucrativo negócio. Parte da sociedade sabotou o sistema em seu próprio favor e passou a criar ratos para vender ao governo

O episódio ajuda a pensar na situação atual do setor elétrico brasileiro, altamente regulado com o intuito de proporcionar segurança à sociedade. Não demorou para que alguns entendessem o jogo e fizessem das regras destinadas a dar estabilidade ao sistema de abastecimento, regras para dar garantia de lucro aos seus próprios negócios. Quanto aos custos, eles ficam por conta do consumidor de eletricidade. 

O exemplo mais recente é o PL (Projeto de Lei) 11247/18, que trata do incentivo a eólicas offshore, aprovado por 403 deputados federais em 29 de novembro deste ano. Apenas 16 dos parlamentares presentes foram contra o texto que deve gerar um custo para o consumidor de energia elétrica próximo a 25 bilhões de reais por ano até 2050, caso se torne lei nos moldes atuais. Um total estimado em 658 bilhões de reais.

A conta foi feita pela consultoria PSR a pedido da Frente Nacional dos Consumidores de Energia e outras sete associações do setor. O texto, que nasceu para fomentar a produção de energia limpa em alto mar (o que por si só seria questionável, dada a abundância de ambientes propícios em solo brasileiro), foi recheado com os famosos jabutis – como o jargão legislativo se refere à adição de matérias estranhas ao objetivo do projeto em avaliação. 

No caso do PL, o texto recebeu, por exemplo, emendas estabelecendo a contratação compulsória de térmicas a gás e a manutenção da operação de térmicas a carvão. Medidas na contramão do objetivo de promover a descarbonização da matriz energética, como discutido na COP 28, que se encerrou nesta semana. 

O deputado gaúcho Bibo Nunes (PL-RS), por exemplo, não cabia em si de satisfação por ter convencido os colegas da “necessidade da Usina Termelétrica de Candiota, no Rio Grande do Sul”, objeto de emenda proposta por ele mesmo.  

A usina pertence ao grupo J&F, dos irmãos Joesley e Wesley Batista. Adquirida em 2022 da base de ativos da Eletrobras, como parte do programa de descarbonização da ex-estatal, em um negócio de 72 milhões de reais, a unidade produz energia a partir da queima de carvão – método notadamente poluente. Caso o Senado Federal valide o texto aprovado na Câmara dos Deputados, os brasileiros ficarão obrigados a comprar essa energia até 2050.

O mesmo grupo recebeu há pouco autorização do governo para abastecer o estado de Roraima, que não está interligado à rede elétrica nacional, com energia importada da Venezuela. Até aí nada de mais. O problema é que até 2019, quando um contrato anterior foi interrompido, o Brasil pagava 137 reais por megawatt. A partir de agora, pagará entre 900 reais e 1080 reais por megawatt, quase oito vezes mais do que antes.  

Isso se tornou possível porque o decreto do governo estabeleceu como parâmetro o preço elevado da energia produzida por usinas termelétricas, atualmente acionadas para atender Roraima. Enquanto o megawatt importado do país vizinho for mais barato do que isso, está valendo. Argumenta-se que isso reduz um custo que está embutido na conta de eletricidade de todos os consumidores brasileiros, o que é verdade. Mas a redução poderia ser muito maior se houvesse negociação pelo valor do megawatt. Sem ela, a Venezuela e a Âmbar, empresa de energia dos irmãos Batista, têm ganhos fáceis.

Vale ressaltar que o preço entre 900 reais e 1080 reais foi sugerido pela própria Âmbar e acatado pelo governo. A empresa, além disso, foi a única que se apresentou para o processo de autorização da importação. É de se estranhar que não haja concorrência em um negócio aparentemente tão lucrativo. Talvez não esteja claro para o resto do mercado em qual porta é preciso bater.

De volta ao PL das eólicas offshore: ele também traz benefícios a uma figura importante do setor energético, o empresário Carlos Suarez, o “S” da empreiteira OAS. Conhecido como o “rei do gás”, Suarez tem participação em oito distribuidoras de gás que são as únicas com autorização para distribuir gás encanado em oito estados do país. Falta um detalhe: uma rede de gasodutos que chegue até eles.

O ritual se repete há algum tempo. Sempre que um grande projeto sobre o setor elétrico tramita no Congresso, algum deputado ou senador tenta encaixar no texto um mecanismo que garanta a construção dessa rede. Até hoje não deu certo. Desta vez, foi o relator do projeto na Câmara, deputado Zé Vitor (PL-MG), quem incluiu medidas para incorporar os custos da construção da infraestrutura que interessa ao rei do gás na tarifa de energia elétrica do consumidor final.  

Suarez também é conhecido por ter participação no mercado de Pequenas Centrais Hidrelétricas, que tiveram subsídios estendidos no PL 11.247/18, com a prorrogação por mais 20 anos do Proinfa (Programa de Incentivo às Fontes Alternativas de Energia Elétrica). 

O capitalismo de laços parece ter voltado a atar nós importantes na economia brasileira sem muita dificuldade. Na votação do PL das eólicas offshore, governo e oposição votaram juntos na Câmara dos Deputados. 

Além do prejuízo imediato ao consumidor de energia elétrica brasileiro, que pagará mais caro por anos, esse método desincentiva a busca pela eficiência na alocação de capital e na produção. Afinal, por que investir em máquinas de ponta e desenvolvimento de tecnologia, quando o fator mais relevante são os gabinetes a que se tem acesso? O capitalismo de laços é um verdadeiro choque de anticapitalismo. 

O Brasil deve sempre estar atento à criação de ratos para venda. 

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  1. E vamos em frente!!….cada dia um passo para trás. Não posso esquecer de quanto a Lava-Jato não estaria contribuindo à população brasileira se ajudarmos estivesse existindo.

  2. Ótima análise. Os gasodutos não existem porque o gás é importante na reinjeção visando à recuperação do óleo. Talvez consigam aumentar a exportação pro mercado no futuro, mas até lá, qualquer gasoduto só se viabiliza com subsídio público. Enquanto isso os empresários usam as brechas do sistema pra se locupletarem

  3. Da direita à esquerda, passando pelo contumaz centrão, tá todo mundo se lambuzando no poder, ajudando os apaniguados. Pra mim a solução mais viável continua passando Franco Montoro, não o político, o aeroporto.

  4. A cada dia cada vez mais a sociedade brasileira assiste uma deterioração moral do país com a atuação dos que exercem o poder nos três níveis executivo/legislativo/judiciário. Traz à memória os personagens de "Viva o Povo Brasileiro" de João Ubaldo. As elites tornaram-se quadrilhas que surrupiam o futuro dos brasileiros.

  5. É desesperador. Somos 200 milhões de otários saqueados diariamente por uma elite político, financeira e empresarial cuja malandragem, ganância e ignomínia não têm igual.

  6. Com esse tipo de "capitalismo" entre amigos, e o pendor estatizante desse governo, nada aqui pode dar certo. Para completar, uma boa parcela da população tem o talento da malandragem e cria ratos para se dar bem. Tamo fu.

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