Caio MattosFuncionários da Télam fazem protesto em Buenos Aires: eles criaram um site paralelo

A ousadia de Milei

O presidente da Argentina suspendeu as atividades da agência de notícias pública Télam em um ato movido por princípios, não pragmatismo 
08.03.24

O presidente da Argentina, Javier Milei, avançou com planos para fechar a agência de notícias pública Télam nesta semana. Privatizá-la foi uma promessa de campanha, relembrada no discurso do presidente ao plenário da Câmara dos Deputados na abertura do ano legislativo, na sexta passada, 1º de março. Milei sempre acusou a Télam de fazer propaganda peronista e de consumir um gasto público desnecessário. Na segunda, 4, o governo dispensou os cerca de 750 funcionários do veículo por sete dias. A polícia expulsou os empregados que estavam na redação da Télam, em Buenos Aires, naquela madrugada e cercou suas dependências. Desde então, o site da agência está fora do ar. É um cenário bem diferente do visto quando Jair Bolsonaro, que falava em privatizar a Empresa Brasil de Comunicação, EBC, preferiu cooptá-la para veicular sua propaganda.

A suspensão da Télam é uma questão de princípios de Milei, mais do que de pragmatismo. Fundada por Juan Domingo Perón em 1945, a agência foi manchada por coberturas tendenciosas. Em 2021, na gestão Alberto Fernández, a agência publicou conteúdo falso para tentar omitir uma festa na residência oficial de Olivos, que descumpria o protocolo de confinamento da pandemia. Por outro lado, a economia feita com o fim da Télam, cerca de 20 milhões de dólares ao ano, é insignificante perto de gastos e problemas estruturais graves, como o sistema previdenciário, que contribuem para uma dívida pública na casa das centenas de bilhões de dólares. Se por um lado qualquer corte de gasto é válido para um presidente que se move por princípios e quer atingir um objetivo, por outro, Milei também poderia ter problemas ao não tentar ser pragmático.

Para concluir uma privatização de verdade, e não apenas sucatear uma empresa pública que emprega centenas de pessoas, Milei teria de cumprir com requisitos jurídicos e minimizar o desgaste político. No plano jurídico, o Decreto de Necessidade e Urgência (DNU) de dezembro abriu uma brecha para que a Télam possa ser privatizada sem aval do Legislativo. Caso Milei opte por privatizá-la dessa maneira, há a possibilidade de o Congresso derrubar o DNU, cuja apreciação no Legislativo tramita desde fevereiro.

Assim, no plano jurídico, a privatização da Télam é mais fácil que a de sua homóloga brasileira, a EBC, que demanda lei e, mesmo assim, pode esbarrar em entraves com a Constituição de 1988, cujo artigo 223 prevê a existência da imprensa pública. O que Milei não pode fazer é atropelar suas prerrogativas jurídicas. Quando o ex-presidente Mauricio Macri, hoje aliado do libertário, estava na Casa Rosada, ele demitiu 40% dos funcionários da Télam, em 2018. Mais tarde, o Judiciário reverteu a maioria das demissões.

Algo particular da cultura argentina é o desgaste político que um presidente pode ter ao tentar uma privatização. Desde que a polícia cercou a sede da Télam, funcionários e sindicalistas se organizaram para acampar nos arredores. Eles decidiram reutilizar um site alternativo para continuar com as publicações da Télam. Uma das lideranças dos manifestantes é Carla Gaudensi, jornalista da agência desde 2009 e secretária-geral da Federação Argentina de Trabalhadores da Imprensa. Ela estava na sede da Télam quando os funcionários foram expulsos da redação na segunda. “Sempre que tentaram silenciar a Télam, os trabalhadores a defenderam“, diz Gaudensi a Crusoé. A empresa chegou a ser privatizada na década de 1950, mas logo foi extinta e reestatizada em um intervalo de menos de dez anos. Desde 1968, a empresa segue sob controle do Estado.

Para o azar de Milei, o momento atual não é oportuno para o embate. Em março, há cobranças de tarifas recém-aumentadas e negociações de reajustes de pisos salariais, que precisam ser aprovados pelo governo. A suspensão da Télam é mais um motivo para o sindicalismo peronista convocar uma segunda greve geral, após a de 24 de janeiro.

 

A existência de uma imprensa pública se baseia no direito ao acesso à informação. Veículos públicos cobrem os rincões mais afastados do país, onde não há demanda suficiente para a iniciativa privada chegar. Além disso, como os textos e as produções audiovisuais da imprensa pública tendem a ser gratuitos, eles alimentam veículos jornalísticos menores. Assim, as agências públicas não são essencialmente um desperdício. “O acesso à informação é um direito. Ninguém pensaria que a saúde ou a educação pública não possam ser deficitárias”, diz Camilo Vannuchi, da Faculdade Cásper Líbero. Gastos com a imprensa pública só são desnecessários se não há eficiência na gestão.

Uma possibilidade para contornar a cooptação política seria conceder autonomia editorial, como é o caso da BBC, no Reino Unido. Entretanto, nem Argentina nem Brasil têm a cultura política dos britânicos, que estabeleceram a BBC na década de 1920 e foram consolidando sua autonomia ao longo de décadas. “Pelo momento, me parece utópico que a Argentina ou o Brasil possam criar algo como a BBC. Os governos aqui tendem a se apropriar dos meios públicos para propaganda”, diz Miguel Wiñazki, editor-chefe do jornal argentino Clarín.

Quando Bolsonaro teve a oportunidade de despolitizar a EBC, criada pelo PT em 2007 e aparelhada desde sempre, ele preferiu convertê-la em sua própria máquina de propaganda. O ápice foi a transmissão da fatídica reunião com embaixadores no Planalto, em julho de 2022, durante a qual tentou descredibilizar o sistema eleitoral. Com a posse de Lula em janeiro de 2023, a EBC voltou a fazer propaganda petista.

Convicto de seus princípios libertários, Milei não é Bolsonaro, muito menos Lula. Falta saber se seus ideais não podem comprometer demais seu governo e, paradoxalmente, restringir a liberdade de informação.

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  1. A semelhança entre a Telám e a GloboLIXO é mero acaso? o controle da imprensa lá como aqui à custa de prebendas e do rabo dos manés e gardelóns levou a Argentina ao caos e leva o Brasil ao lixo que antecede ao caos, mera questão de tempo ... Millei e sua "loucura" é a única chance do país um dia a maior renda per capita do mundo sair da merda, já aqui vamos para o triunvirato Xandão, Verboso e Lusbanja já reservando passagem a Nicarágua pois Portugal com Ventura no poder nos fecha a porta.

  2. Milei ao menos parece ter mais coragem do que seu aparentado brasileiro, que se vergou às primeiras contrariedades. Serviço de informação pública não serve para países sem largas tradições democráticas e com elevado sentido institucional. No galinheiro que é a política sul-americana estações de TV públicas só servirão para campanha pro governo de turno, não tem jeito.

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