Julia Prado/MS via FlickrA ministra da Saúde, Nísia Trindade: Só temos que saber se o que pouparemos em dinheiro compensa o que perderemos em representação

Notas técnicas salvariam um governo do seu aborto?

Notamos que um Congresso caro e coalhado de gente pode tranquilamente ser substituído por um serviço de notas técnicas ministeriais
08.03.24

Na semana que passou, a ilustríssima ministra da Saúde —país pobre, entendo eu, deveria ter Ministério da Doença; nós, ricos talvez, temos um da Saúde— soltou e rapidamente suspendeu nota dita “técnica” cujo texto autorizava, meio nas entrelinhas, e meio nas linhas mesmo, a injeção letal, o enforcamento, o afogamento, a eletrocussão, a incineração, a lapidação, a sucção cerebral, o esquartejamento a machadadas, enfim, qualquer prática que possa entrar na rubrica “aborto” para gestados até nove meses, e isto mediante qualquer justificativa, grave ou tênue, que se quisesse (se se quisesse) dar.

A justificativa para a edição na nota me escapou; a justificativa para a revogação foi que “o documento não passou por todas as esferas necessárias do Ministério da Saúde e nem pela consultoria jurídica da Pasta”, o que é um jeito muito elegante e democrático de dizer que passou sem que todo o mundo lá do Ministério lesse. Louvo, é claro, a ministra humilde que suspende as notas que passam sem que tenham sido lidas por todos os que as deviam ler. E espero que, para sua própria segurança, o pessoal do Ministério seja mais atento com seus talões de cheques e contratos pessoais do que é com os documentos da Pasta (com “p” maiúsculo; pasta com “p” minúsculo é uma coisa mais saudável).

A nota técnica causou pasmo e maravilhamento não só pelo conteúdo em si, mas também porque, ao que parece (é difícil ter certezas no Brasil de hoje em dia, concorda, amigo?), esse conteúdo não está, digamos assim, cem por cento de acordo nem com a legislação vigente, nem com a vontade da maioria das pessoas, que – é bom que se diga – ficaram meio chocadas com a “liberação técnica” para abortar crianças à beira de nascer. Pelo que se entendeu, a nota técnica não somente autorizava o aborto como ainda insinuava a todo o mundo – à lei, ao Congresso, à opinião popular – que fosse ver se ela estava na esquina. Compreende-se o desconforto.

Agora, tem uma coisa: a gente se vê forçado a notar que um Congresso caro e coalhado de gente – deputados, senadores, assessores mil, ascensoristas, tias do café, estagiários disto e daquilo, pilotos de helicóptero, massagistas, motoristas, engraxates, jornalistas – pode tranquilamente ser substituído por um serviço de notas técnicas ministeriais. Basta que o serviço seja mais atento do que o do Ministério da Saúde; se for, bau-bau Parlamento. Só temos que fazer as contas e saber se o que pouparemos em dinheiro, se é que pouparemos, compensa o que perderemos, se é que perderemos, em representação.

O amigo prevê confusão? Pois eu não: basta uma nota técnica do Ministério da Justiça (por exemplo) que diga que as notas técnicas têm precedência sobre quaisquer leis, sejam neutras, a favor ou em contrário. Isto feito, pimba: acompanhe no Diário Oficial o vaivém das notas técnicas para saber se hoje chove e se amanhã te deixam ou não comer umas salsichas.

* * *

Alguns dias depois do nosso Ministério a França fez coisa parecida; apenas, a “nota técnica” de lá tomou a forma de uma emenda constitucional. Não estou cem por cento por dentro das tecnicalidades; não sei, por exemplo, se às francesas é permitido matar a “coisa-não-viva” tão perto do parto quanto aqui se quis, se quer ainda, permitir. Só sei que agora a parada é constitucional e rendeu show pirotécnico, fumaça roxa (a cor da Quaresma), gente cantando musiquinha da Rihanna (ou de alguma outra cantora; eu as confundo um pouco), lágrimas de alegria, enfim, a parafernália toda de título de Copa do Mundo. E não pense o amigo que houve polêmica, que houve discórdia, que houve pasmo ou estupor. Não. A emenda passou com votação na proporção de dez “sim” para cada “não”.

Pelo visto, o jour de gloire fará com que não haja no futuro da França tantos enfants a que la Patrie possa dizer allons. Eu, da minha parte, me espanto que, ao contrário da turma do amor, sejam logo os conservadores – esses genocidas, esses nazifascistas, essa “gente muito feia” e neocafona – os únicos a dizer que aquela coisa que chora e quer mamar é humana e está viva.

Orlando Tosetto Júnior é escritor

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
  1. O mais nojento foi a maneira sub-repitícia com que se tentou atropelar tanto o congresso como a vontade da vasta maioria da população. O fato disso não ter repercutido mais na imprensa só reforça o patético estado do nosso jornalismo.

  2. Parabéns pelo excelente artigo! Infelizmente , o Brasil rasgou a Constituição há muito tempo e absurdos como esses ficam impunes. Cabe a sociedade exercer sua cidadania .

Mais notícias
Assine agora
TOPO