Foto: Rosinei Coutinho/SCO/STFDias Toffoli: surpreendente humildade

Inesperada humildade

Supremo tentou, pela terceira vez, legislar sobre drogas, mas um pedido de vista surpresa do ministro Dias Toffoli adiou a decisão
08.03.24

Pela terceira vez em dez anos, o STF tentou afrouxar as regras sobre o porte de drogas — maconha, especificamente — para uso pessoal. Não conseguiu. O freio de arrumação veio de um momento de lucidez do ministro Dias Toffoli, o “amigo do amigo de meu pai” citado pelo empresário e delator Marcelo Odebrecht na operação Lava Jato. O placar, neste momento, é 5 a 3 em favor do afrouxamento. O caso deve voltar à pauta em cerca de 90 dias.

Na quarta-feira, 6, o STF retomou o julgamento de um recurso extraordinário que discute a constitucionalidade de disposições do artigo 28 da lei 11.343/2006, que criou o Sistema Nacional de Políticas Públicas Sobre Drogas. O parágrafo 2º desse artigo afirma que, “para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente“.

A discussão na Corte se encaminhou para a definição da quantidade acima da qual o porte se transformaria em tráfico. Parece pouco significativo, mas além de facilitar a disseminação do uso de drogas entre pessoas comuns, o estabelecimento de uma quantia autorizada também abre uma avenida para os traficantes criarem novas estratégias de burla à polícia e para questionarem prisões nos tribunais, mesmo quando as outras circunstâncias elencadas pela lei apontarem para o tráfico.

A ação começou a ser analisada no plenário do STF em 2015, com votos do relator Gilmar Mendes e dos ministros Luis Roberto Barroso e Edson Fachin. Teori Zavascki, que pediu vista, morreu em 2017 sem ter redigido sua opinião. O julgamento foi retomado em agosto de 2023, quando Alexandre de Moraes e Rosa Weber se posicionaram. Foi a vez de André Mendonça pedir vista. A sessão desta quarta foi marcada depois de ele devolver os autos ao tribunal.

No início da semana, como na retomada do julgamento em agosto do ano passado, deputados e senadores afirmaram que o Congresso não pretende se omitir em relação a esse tema. Senadores disseram a Barroso que a chamada “PEC da criminalização da maconha“, que anularia as eventuais medidas liberalizantes tomadas pelo tribunal, deve ser votada pela CCJ da Casa ainda em março, com a possibilidade de ir a plenário já em abril. Na Câmara, Arthur Lira (PP-AL), deu sinais à bancada conservadora que, se o texto vier pronto do Senado, tem grandes chances de avançar sem maiores atropelos.

Mesmo diante dos alertas enviados por personagens como Rodrigo Pacheco (PSD-MG), presidente do Senado, Barroso manteve-se fiel ao propósito de redirecionar a discussão sobre drogas no Brasil, por meio de uma sentença judicial, de um suposto “paradigma punitivista” para uma abordagem “mais voltada à saúde pública“.

Em 2023, às vésperas da tentativa anterior do STF de completar o julgamento do processo, Crusoé dedicou sua reportagem de capa à demonstração de que tentar abordar a questão das drogas estabelecendo uma fronteira entre posse e tráfico com base no peso transportado é simplista e pueril. A revista demonstrou que a canetada do tribunal não está apta a solucionar um problema que requer a articulação de diversos tipos de política pública.

Existe, além disso, a questão do relacionamento entre os Três Poderes. A lei sobre drogas é relativamente recente, data de 2006. Naquela época, o Congresso não ficou alheio à questão da quantidade transportada por usuários e traficantes. O tema foi discutido e a decisão foi incluir esse fator entre os vários outros que os juízes devem levar em conta ao decidir se alguém pilhado com maconha ou outras drogas deve ou não ir para a cadeia. Lembrando que a mera posse já não é tratada como causa para prisão: a lei prevê advertências, medidas educativas e, no máximo, prestação de serviços comunitários para os usuários.

Nesta semana, a Corte pareceu estar mais alerta para essas dificuldades. Ministros como Gilmar Mendes e Luís Roberto Barroso, muito incisivos em sessões anteriores, quando votaram pelo afrouxamento da lei, se mostraram circunspectos e comedidos desta vez. Os três votos proferidos foram contrários a uma interferência do STF naquilo que foi legislado. “Não há omissão legislativa que reclame intervenção do Judiciário“, afirmou o ministro Kassio Nunes Marques, antes de se manifestar pela constitucionalidade dos dispositivos questionados. Ele seguiu André Mendonça e Cristiano Zanin, que já tinham se manifestado nesse sentido.

A surpresa veio de fato do pedido de vista de Dias Toffoli. Com louvável humildade, ele pôs do dedo na ferida: a Justiça não é o espaço adequado para decidir quantos gramas de um entorpecente são quantidade significativa ou não. De fato, como observou o psiquiatra Ronaldo Laranjeira em entrevista ao Antagonista nesta semana, o mercado ilegal de drogas se tornou tão dinâmico e “inovador” que a potência dos entorpecentes — inclusive a maconha — aumenta de maneira contínua. A decisão sobre peso tomada hoje no STF pode não fazer sentido amanhã.

Toffoli parece ter atentado para esse fato: “A lei que estabelece o que é droga lícita e o que é droga ilícita diz que cabe à Anvisa dizer o que é lícito e o que é ilícito. Há uma agência reguladora, normativa e fiscalizadora, dotada dessas competências. Eu, sinceramente, não tenho a mínima ideia do que é capaz de ser lícito ou ilícito em termos de quantidade de utilização.”

A fala do ministro não foi pura contenção. Ele fez uma crítica aos outros poderes. “Eu penso que cabe ao legislador e ao Poder Executivo, na forma da nossa regulamentação constitucional, dizer sobre isso“, afirmou Toffoli. “É muito fácil eles lavarem as mãos e jogarem para nós a responsabilidade. Dito isso, eu não falo mais nada.”

Outros ministros compartilham dessa opinião. Acreditam que não é sábio trazer para o colo do STF um problema que pode ser delegado a outras instâncias, sobretudo por não existir uma emergência que demande uma intervenção imediata do Judiciário.

Já votaram a favor da facilitação do porte de drogas os ministros Luís Roberto Barroso, Alexandre de Moraes, Edson Fachin, Rosa Weber e Gilmar Mendes. Três são contra: Cristiano Zanin, Kassio Nunes Marques e André Mendonça. Faltam agora as manifestações de Toffoli, Luiz Fux e Cármen Lúcia. Quem circula pelo tribunal ainda aposta que a posição mais licensiosa vai prevalecer, num placar de 6×4 ou 7×4. Mas a repercussão dos posicionamentos dos três ministros que votaram contra a liberalização e de Toffoli, que pediu vista, pode produzir uma surpresa.

O STF atravessa uma das piores crises de imagem de sua história. Em fevereiro, 50,9% dos entrevistados disseram não confiar na Corte, numa pesquisa do instituto AtlasIntel em parceria com o site Jota. No último domingo, 3, outra pesquisa, conduzida pela Quaest, revelou que 74% dos brasileiros acreditam que o STF incentiva a corrupção, por ter suspendido os acordos de leniência firmados por grandes empresas na esteira da Lava Jato. Toffoli, cabe lembrar, foi um dos artífices dessa manobra, que pode economizar bilhões para empresários que confessaram ter pago propina e desviado dinheiro público.

Nessas circunstâncias, uma mostra de autocontenção e um gesto de deferência em relação ao Legislativo poderia ser benéfico para o STF. A menos que a Corte esteja disposta a queimar seu capital de imagem até a última ponta.

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  1. Inesperada franqueza, eu diria. Ao confessar uma ignorância já reconhecida por todo mundo. Não entende de drogas, como não entende o que é corrupção, só domina a arte de ser sabujo de poderosos. A Suprema Corte desse país se tornou uma vergonha e já passou a hora de se estabelecer uma forma de por ordem nesse prostíbulo.

    1. Pois é Annie mas a pergunta fatal ... o poder fuma? cheira? injeta? por tanta insanidade é o que tristemente parece e logo seremos o país dos drogados?

  2. Humildade? Provavelmente somente a criação de dificuldades para valorizar seu pixuleco em.mais este evento que deveria estar fora da alçada destes corruptos.

  3. Se a posse de droga for liberada, mesmo que em pequenas quantidades, haverá estímulo à sua produção e transporte. Eles vão tratar de liberar toda a cadeia de produção e consumo? Papel aceita tudo

    1. A droga há anos está "liberada" no país da ignorância e da deseducação que forma doutores drogados pelo que há de pior a ideologia medieval assassina e escravocrata que está sendo devagar imposta ao canelau pelo aparelhamento do Estado hoje sob controle do bando do poder que com seus tentáculos golpeiam e escravizam como bem querem os tolos manés .. felizes nós idosos que podemos oPTar pela eutanásia redentora ... que a morte nos seja leve !!!

  4. As verdadeiras questões que interessam ao país são varridas para debaixo do tapete do Supremo. Mantem a condenação de um pobre coitado que roubou uma picanha e determina o cancelamento de pagamento de multas bilionárias de grandes empresas e anula acordos de leniência que reconheceram suas falcatruas. Não há mais "capital de imagem" para queimar. Apenas se mandar os brasileiros pagarem multas à essas empresas e com pedido de desculpas.

  5. Esse julgamento é a síntese dos problemas brasileiros: uma cúpula do poder atropelando a outra, um punhado de iluminados solapando a vontade clara da maioria da população, decisão grave e irresponsável cujas consequências óbvias não alcançarão os responsáveis por ela, mas sim os que foram inicialmente contra ela.

  6. A soltura de chefões do tráfico como a liberação de drogas faz parte do projeto comuno bolivariano claro curso que fingem não ver? O poder legislativo sob centenas de processos no STF tem força para deixar de ser um sub poder? Viva o semi presidencialismo do dr. Tofoli ...

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