Marcos Corrêa/PR via FlickrO pobre-diabo empresarial é figura miúda, que o ex-presidente jamais carregaria na garupa em suas motociatas

Como Bolsonaro radicalizou o pobre-diabo

Um ensaio sobre obras literárias protagonizadas por figuras miúdas abre caminhos para entender o lugar social dos baderneiros que o ex-presidente deseja anistiar
08.03.24

O bolsonarismo dispensou seu mártir.

Em novembro do ano passado, a Horda Canarinha reuniu-se na avenida Paulista para homenagear Cleriston Pereira da Cunha, que morrera no Complexo Penitenciário da Papuda, em Brasília. Participante da intentona tonta do 8 de janeiro, ele esteve entre aqueles que invadiram e depredaram o Congresso, segundo denúncia da Procuradoria-Geral da República (PGR). Jair Bolsonaro não compareceu ao ato.

Duas semanas atrás, Bolsonaro carregou uma multidão bem maior para a Paulista. Até onde vi, o único que mencionou Cleriston nos discursos do dia foi Silas Malafaia. Ele lembrou que Clezão, como era conhecido, foi membro de sua igreja, e disse que o sangue do morto está nas mãos de Alexandre de Moraes (a PGR havia recomendado a liberdade provisória de Cleriston, devido a sua condição delicada de saúde, mas o pedido ficou esquecido em uma gaveta do ministro). O pastor só não sabia o nome correto de sua ovelha: chamou-o de Clésio.

Provável futuro réu do STF, Bolsonaro não julgou prudente associar Alexandre de Moraes a Lady Macbeth. Preferiu pedir que o passado seja apagado (teimoso, o passado voltaria ao noticiário uma semana depois, no depoimento do general Freire Gomes à PF). Não citou Cleriston (nem Cleison), mas propôs que o Congresso anistie os baderneiros que seguem na Papuda. Não é razoável, disse, que se puna com tanto rigor “esses pobres diabos que estavam lá no 8 de janeiro de 2023”. Entre um e outro ato na Paulista, Cleriston foi de mártir singular a integrante anônimo de uma malta de pobres diabos.

Mas me corrijo: na verdade, a expressão que Bolsonaro empregou foi “pobres coitados”. Seria gafe imperdoável falar em “pobres diabos” ao lado do pastor Malafaia – que, afinal, está bem longe de ser pobre.

Como o coitado geralmente é pobre, e vice-versa, “pobre coitado” é quase um pleonasmo. Prefiro a ambiguidade dos termos que usei por engano. “Como acontece com alguma frequência nas frases feitas, o sal da expressão ‘pobre-diabo’ está em seu caráter paradoxal”, diz o poeta e tradutor José Paulo Paes no ensaio “O pobre-diabo no romance brasileiro”, incluído em A Aventura Literária, livro publicado em 1990. A expressão, explica Paes, tem um núcleo negativo, “diabo”, que é amaciado pelo adjetivo “pobre”. A entidade que para os cristãos representa a essência do Mal sai diminuída pela qualificação que o torna um ser “infeliz, desprotegido, digno por isso de lástima e compaixão”. E compaixão, adverte o autor, é um sentimento que temos por quem está em posição de inferioridade em relação a nós.

Paes procede a uma interessante tipificação sociológica do pobre-diabo, tal como a figura aparece em quatro romances brasileiros: O Coruja (1887), de Aluízo Azevedo; Recordações do Escrivão Isaías Caminha (1909), de Lima Barreto; Os Ratos (1935), de Dyonelio Machado; e Angústia (1936), de Graciliano Ramos. O pobre-diabo não é um miserável (ou um lumpemproletário, nos termos marxistas de que Paes se vale), nem um trabalhador braçal (ou proletário). Situa-se na faixa social intermediária que antigamente se chamava de “pequena burguesia”. Nessa posição periclitante, a queda é bem mais fácil e rápida do que a ascensão.

O pobre-diabo literário é tipicamente um funcionário público de baixo escalão (Isaías Caminha diverge do padrão: trabalha como contínuo no jornal O Globo). Não deve ser mais assim hoje. Cleriston era empresário no município baiano de Feira da Mata. As matérias que localizei sobre ele na imprensa não dizem de que ramo seria sua empresa. Também empresário – e do ramo de gás, segundo alguns veículos de imprensa – seria George Washington de Oliveira Sousa, preso na véspera de Natal de 2023 por planejar a explosão de uma bomba em uma torre elétrica de Brasília. Mas em Xinguara, cidade do Pará onde vivia, ele andava ganhando a vida como gerente de postos de gasolina. Recuando à militância pró-Covid dos tempos pandêmicos, encontramos ainda a empresária Marluce Gomes ofendendo enfermeiras que faziam um protesto em frente ao Palácio do Planalto no feriado de 1º de maio de 2020.

São apenas três exemplos que puxei de memória. Mas basta lançar “empresário bolsonarista” no Google para descobrir muitos outros, quase sempre implicados em incidentes de violência ou em mal concebidos ensaios de insurreição. Não falo aqui da corte empresarial de Bolsonaro, na qual se destacava o terno brega de Luciano Hang. O pobre-diabo empresarial é figura miúda, que o ex-presidente jamais carregaria na garupa em suas motociatas. No máximo, o pobre coitado seria admitido no cercadinho do Alvorada.

Desconfio que se encontrarão entre os pobres diabos muitos trabalhadores que tocam negócios informais, de fundo de quintal, ou que vivem de bicos diversos, mas que se apresentam como empresários porque isso pega bem nos meios bolsonaristas. Como a esquerda tradicionalmente despreza os empresários – excetuados, claro, os grandes empreiteiros, que muitos esquerdistas consideram mártires da indústria nacional perseguidos pelo lawfare –, o liberalismo vulgar cultivado por aí tratou de enaltecê-los como heróis.

Em seu ensaio, Paes descobre no Luís da Silva de Angústia e no Naziazeno de Os Ratos os perdedores de um longo ciclo de urbanização e modernização da sociedade brasileira, que se acelerou depois da Revolução de 1930. Minha hipótese diletante: o empreendedor pobre-diabo também está entre os brasileiros que saíram perdendo no período que vai da estabilização econômica do Plano Real à crise provocada pela Covid, com o desastre econômico produzido pelo governo Dilma no meio do caminho. No deputado de baixo clero “escrotizado” (palavra dele) na Câmara, o pobre coitado da iniciativa privada encontrou seu representante, sua voz, seu igual. E se lançou na radicalização que Bolsonaro, já na presidência, tanto incentivou.

O triste trajetória do novo pobre-diabo talvez rendesse boa literatura. Teremos um novo Dyonelio ou Graciliano à altura da tarefa?

 

Jerônimo Teixeira é jornalista e escritor

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  1. Outra característica do pobre diabo: desesperança como consequência do abandono total. Essas são forças poderosas para quem souber mobilizá-las.

  2. Isso só aumenta minha angústia ao imaginar se teremos cidadãos com força política para mudar a "cara" deste país! Seja pobre ou rico, culto ou ignorante. Temos de tudo no mercado da compra de votos.

    1. Que ninguém se engane o STF aparelhado pelo comuno bolivarianismo se torna ditador, governa de fato um pais de idiotas e omissos .. Lula e Bolsonaro dividiram o pais em ignorância e fanatismo fruto da deseducação de um povo tolo aculturado, prender o último para a vingança imoral e ilegal do ladrão preso e impunizado para presidir a bodega será fatal a ambos e quem sobreviver chorará !!!

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