Vitor Silva/Botafogo via Flickr"O pior do futebol brasileiro foi destilado em 15 segundos e imortalizado para a história, ao estilo do gol de mão de Maradona na Copa de 1986"

Carnavais, malandros e pênaltis

Estaria a busca pela famigerada justiça social na gênese da lamentável operação do árbitro do vídeo no Brasil?
08.03.24

Rodou o mundo a cena em que Yarlen, machucado fora de campo, é carregado por um companheiro do Botafogo para dentro das quatro linhas, com a intenção de ganhar tempo, para, logo em seguida, ser arrastado para fora de novo por jogadores do Fluminense. O pior do futebol brasileiro foi destilado em 15 segundos e imortalizado para a história, ao estilo do gol de mão de Maradona na Copa de 1986.

 

 

“O malandro é um ser deslocado das regras formais, fatalmente excluído do mercado de trabalho, aliás definido por nós como totalmente avesso ao trabalho e individualizado pelo modo de andar, falar e vestir-se”, diz o antropólogo Roberto DaMatta em Carnavais, Malandros e Heróis, em que fui buscar entender de onde saiu essa nossa mania de burlar as regras e tentar enganar o juiz.

DaMatta diz que “o campo do malandro vai, numa gradação, da malandragem socialmente aprovada e vista entre nós como esperteza e vivacidade, ao ponto mais pesado do gesto francamente desonesto”. Mas é ao analisar a figura de Pedro Malasartes, o malandro clássico, que surge uma hipótese para tantos pênaltis cavados e cotoveladas imaginárias nos gramados nacionais:

“Na linguagem moderna do Brasil, Pedro Malasartes, acima de ser um herói sem caráter, é um subversivo, um perseguidor de poderosos, para quem sempre leva a dose de vingança e destruição que denuncia a falta de um relacionamento social mais justo entre o rico e o pobre, além de revelar o código moral que deve pautar o relacionamento entre fortes e fracos, fundado sobretudo no envolvimento e respeito moral entre ricos e pobres.”

Quer dizer, a famigerada sede por justiça social pode estar na gênese do fingimento do goleiro que simula contusão para esfriar o jogo. É claro que o autor da cera não está exatamente em busca de justiça ao desafiar o cronômetro enquanto se contorce pelo chão, mas seu comportamento estaria condicionado pela desigualdade social brasileira, que desenvolve nos mais desafortunados um código pervertido de justiça.

Pode estar aí também uma explicação para a insistência obsessiva dos operadores da arbitragem de vídeo nacional em corrigir milimetricamente marcações de campo — o que não raramente tem levado a distorções quilométricas da regra do jogo. O caso mais recente foi o pênalti marcado para o Palmeiras contra o São Paulo.

O goleiro Rafael sai para socar a bola e, numa dividida, acerta a cabeça do zagueiro Murilo, que naturalmente caiu no chão acusando o golpe. O árbitro de campo não viu irregularidade no lance, mas a árbitra de vídeo buscou a penalidade com lupa, em “super slow”, e convenceu o colega a marcá-la, porque o palmeirense teria chegado alguns milésimos de segundo antes na bola.

O arqueiro do São Paulo não foi imprudente, nem usou força excessiva, mas foi penalizado, com cartão amarelo, inclusive. A mesma investigação minuciosa tem ocorrido Brasil afora em lances de pênalti e de gol, cujas imagens são dissecadas em busca do mais leve toque cuja identificação evitará uma injustiça.

Essa mesma lógica explicaria também por que, no mesmo clássico entre Palmeiras e São Paulo, Richard Rios não foi expulso ao solar a perna de Pablo Maia. O volante são-paulino diz que ouviu do juiz que o lance ficou apenas em cartão amarelo porque o gol do São Paulo saiu no mesmo lance — depreende-se que o VAR não chamou para checagem pelo mesmo motivo. É a justiça torta do malandro.

“Tu não tens a culpa; a culpa tem quem te dá ousadias”, diz uma vizinha a Leonardo, o menino problema de Memórias de um Sargento de Milícias, clássico literário da malandragem brasileira de Manuel Antônio de Almeida. Sem a colaboração dos jogadores e dos árbitros, não tem tecnologia ou alteração na regra que dê jeito ao futebol brasileiro.

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  1. Todo esse texto e a utilização deste excelente veículo pra expressar a choradeira de um sãopaulino frustrado ? - o que foi mais grave, o pseudo erro do arbitro ou o ataque xenofobico do diretor do SFC ? - sim, sou palmeirense e achei ridícula a utilização da revista para essa bobagem.

  2. Matéria muito oportuna. A falta de ética em um esporte tão popular em nosso país como o futebol, não ajuda em nada a educação de nossa gente …

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