Fernando Frazão/Agência BrasilEntregador de iFood no Rio de Janeiro: com nova lei, independente da concorrência, o consumidor pagará mais caro todos os anos

A democracia e as más políticas públicas

A regulação de apps mais uma vez faz valer a máxima de que não há bons e maus quando o assunto são políticas públicas. Apenas interesses.
08.03.24

Após longas discussões, governo e empresas chegaram a um consenso sobre a proposta de regulação para apps. A definição, ao contrário do que muitos alardeiam, é extremamente positiva para os apps, além de bem recebida pelas empresas (surpresa, mas nem tanto!).

Para começar, a regulação afasta a insegurança jurídica, por exemplo. Neste momento, a Uber é alvo de ao menos 10 mil processos, em boa parte por motoristas que buscam o reconhecimento de um vínculo trabalhista. Com a regulação, a Uber vai se livrar deste passivo.

A regulação também garante que as empresas tenham menos dor de cabeça em relação aos acidentes. O custo de bancar pensões, tratamentos médicos e outros eventuais problemas, ficará agora com o INSS e a seguridade social.

Em troca, o governo garante para si R$280 milhões mensais. Um ganha-ganha generalizado, correto? Em partes. Para os motoristas e entregadores, a vinculação trabalhista garante algumas obrigações, que nem todo mundo parece disposto a aceitar.

Na prática, o governo estabelece um valor por hora. Não há qualquer razão para que a Uber, por exemplo, pague um valor extra ao motorista. Em suma, se 1h equivale a R$32, a Uber tenderá a pagar apenas o mínimo. A esperança dos motoristas está na “concorrência”, algo relativamente difícil em um mercado onde 90% está concentrado nas mãos de 2 empresas.

Os ganhos potenciais, como o acesso ao SUS e a benefícios previdenciários não chegam a fazer brilhar os olhos dos trabalhadores, por razões mais do que evidentes. Trata-se de algo que o trabalhador já possui acesso hoje. Não há, dentro do SUS, qualquer necessidade de contribuição para que se possa usar a rede.

Férias remuneradas e 13⁰? Deixa esse assunto para lá. Como o projeto afasta a ideia de vínculo trabalhista, estas duas questões ficam fora de cogitação.

De brinde, ao atrelar a remuneração mínima ao salário mínimo, o governo garante um reajuste nas tarifas igual ao reajuste do salário mínimo, que agora segue uma política de valorização acima da inflação. Isto implica que, independente da concorrência, o consumidor pagará mais caro todos os anos.

Um outro ponto favorável às empresas está na definição de Uber, Ifood, 99 e outras como “intermediadores”, uma definição que garante impostos menores em relação à definição de “empresas de transporte”.

Não por coincidência, temos aí uma regulação em que o regulado comemora. Um caso sui generis em um país conhecido pelas burocracias ao empreendedorismo.

Seria o governo Lula um grande conciliador de classes? É difícil saber, dado que os trabalhadores não foram ouvidos (uma vez que não há lideranças amplas entre eles).

O que sabemos até aqui é que governo e empresas bilionárias parecem satisfeitos.

Essa poderia ser uma questão “estranha”, não fosse apenas a síntese de tudo que já vivemos em matéria regulatória de capital e trabalho.

Estamos vendo na prática as mesmas razões que levaram à Consolidação das Leis Trabalhistas na primeira metade do último século.

É comum que a CLT seja incensada como uma enorme conquista dos trabalhadores, em contraponto a condições degradantes do trabalho no século XIX. Um olhar menos Poliana, porém, aponta o óbvio: regulações do tipo possuem enorme influência das empresas.

Durante a criação da CLT, tivemos um governo que possuía uma visão dirigista da economia. Em resumo, Vargas garantiu com as leis um controle sobre as empresas, além de um controle sobre os trabalhadores, via sindicato.

Do ponto de vista do apoio das empresas, há razões óbvias para que isso ocorra. Empresas possuem incentivos muito maiores para defenderem seus interesses do que o trabalhador comum.

Uma hora dedicada ao lobby para defesa de um projeto pode significar alguns milhões a mais no bottom line, o tal lucro, de uma companhia. Já uma hora dedicada a defender seus interesses pode significar uma piora na qualidade de vida do trabalhador.

É uma realidade cruel, parcialmente solucionada pelo advento da Democracia Representativa. Em suma, se é inviável que todos os trabalhadores opinem em uma democracia direta, elegemos líderes para nos representar.

O problema, claro, está na ideia de que não exista qualquer conflito de interesses e que os incentivos dos líderes sejam perfeitamente alinhados com os dos seus representados. Uma utopia, claro.

Todas essas questões são parte do escopo de estudo de um campo chamado de “Public Choice”, ou “Teoria da Escolha Pública”.

Liderado por economistas como James McGill Buchanan, a Public Choice possui nomes fundamentais para você entender discussões políticas por um viés menos ingênuo.

Discussões políticas, como regulação e direitos trabalhistas, são em essência fruto de ajustes de interesse, seja do governo, empresas, consumidor e trabalhador. Não há, nem de longe, uma divisão entre “bem e mal”.

É tolo, além de desonesto, supor que o governo age apenas por meio de interesses altruístas buscando atingir o melhor para a população, enquanto o setor privado age apenas para maximizar os seus lucros, mesmo que à custa do sofrimento alheio. Quem pensa assim (como boa parte do país), terá dificuldades em entender os motivos de governos e empresas estarem de mãos dadas neste caso atual.

Tivemos agora, ao vivo e a cores, uma aula sobre ciência política e economia, se desenrolando aos olhos de todo mundo.

Se você pretende tomar isto como uma oportunidade, há uma boa dica para começar a rever suas ideias. O clássicoO mito do eleitor racional, do economista americano Bryan Caplan, é uma forma impactante de compreender os meandros da política e sociedade quando o assunto são incentivos e interesses.

O subtítulo, “porque as democracias escolhem más políticas”, é, e ao que tudo indica continuará sendo, uma verdade absoluta para o Brasil.

 

Felipe Hermes é jornalista

 

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