ReproduçaoEm ataques como o contra a Mona Lisa, ativistas da esquerda identitária veem no museu apenas um espaço para sua "mensagem"

A arte como pretexto

A esquerda identitária tende a ver obras de arte como uma tela branca para escrever uma “mensagem”
08.03.24

Um concerto da Filarmônica Nacional da Polônia foi invadido semana passada por ativistas climáticos. Duas moças entraram no palco com uma faixa, gritando palavras de ordem: “Somos a última geração que pode deter as mudanças climáticas”.

O maestro Antoni Wit (com quase 80 anos) não se intimidou, arrancou o cartaz das que protestavam, e continuou regendo como se nada tivesse acontecido. Em seguida as ativistas foram levadas por seguranças, e o concerto seguiu.

 

 

Em janeiro, duas ativistas climáticas jogaram sopa no vidro protetor do quadro Mona Lisa, de Leonardo da Vinci, no Museu do Louvre. Elas gritaram em francês: “O que é mais importante? A arte ou o direito a um sistema alimentar saudável e sustentável?”.

A pergunta é bastante relevante. Contrapõe a arte a necessidades básicas — uma contraposição que não faz o menor sentido, mas denuncia certa mentalidade. Na verdade, as ativistas usam do espaço privilegiado da arte, que atrai a atenção de milhões de pessoas, para fazer propaganda das suas causas.

Elas veem os espaços de difusão das artes — os museus, galerias, cinemas, festivais, salas de concerto — apenas como uma tela branca para escrever uma “mensagem”.

A própria realização das obras é feita com esse objetivo, e também sua apresentação, e ela vai ser apreciada levando em conta o impacto da “mensagem”.

Se você vai a um festival de cinema brasileiro atualmente verá filmes politizados, com temas “atuais” como machismo, homofobia, racismo, ou filmes sobre o passado que dialogam (na mente dos realizadores e exibidores) com o presente, como ditadura militar no Brasil, e os movimentos artísticos que se opuseram à ditadura etc.

Mas não basta isso. Na apresentação dos filmes, os realizadores vão gritar palavras de ordem (já foi “Fora, Temer”, “Fora, Bolsonaro”, agora vai ser algo sobre a situação em Gaza). Nos debates, igualmente, a politização é total: vão falar dos temas do momento, naquele tom militante.

Nas críticas sobre o filme, tais temas também serão usados para julgar o filme, e isso moldará a cobertura subsequente da imprensa.

Cenário semelhante acontece na literatura, com todas as etapas. As feiras literárias são muito parecidas com os festivais de cinema nesse sentido.

Quem não milita na esquerda identitária não consegue frequentar esses ambientes — é insuportável. Ressalto “esquerda identitária” porque a esquerda marxista mais tradicional também não se identifica nesses eventos.

Até que ponto esse tipo de “arte engajada” — coloco entre aspas porque suponho que não seja nem isso — não teria origem em certa leitura apressada que relaciona toda a produção cultural ao momento político e social. Essa leitura tornou-se muito comum no jornalismo cultural e em documentários.

Tal leitura consiste no seguinte: pegar todo e qualquer artista e relacionar com o momento político em que realizou suas obras. Mesmo que não tenha rigorosamente relação alguma.

É claro que o momento, a circunstância em que uma obra foi realizada é relevante para compreendê-la, mas não dá para colocar toda obra como reação à situação política.

Por exemplo: se você vê todos os documentários sobre a arte brasileira durante os governos militares dá a impressão que os artistas produziam exclusivamente reagindo à ditadura. Na verdade, muitos (e grandes) artistas apoiaram discreta ou abertamente os militares (como Elizabeth Bishop, Roberto Carlos, Rachel de Queiroz), outros eram indiferentes, e outros se opuseram mas sem produzir arte tendo em vista essa oposição.

O mesmo acontece no contexto da Guerra do Vietnã, na Segunda Guerra Mundial e por aí vai.

A figura do artista engajado não é nada mais que o clichê supervalorizado. A produção artística feita a reboque da política termina por usar a arte como instrumento.

 

Josias Teófilo é cineasta, jornalista e escritor

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    1. Concordo plenamente Ana. Eu iria fazer um pequeno discursos sobre essa desgraça que invadiu nossa cultura, mas não acrescentará muito, afinal o artigo de Teófilo está representando muito bem essa minha angústia. Eu não saberia escrever tão bem.

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