ReproduçãoPutin como piloto: garantias e direitos fundamentais são sistematicamente desrespeitados pelo governo

Putincracia

Após flertar com a democracia e navegar nos mares incertos de uma autocracia, a Rússia se consolida como uma ditadura
08.03.24

Vladimir Putin assumiu o cargo de primeiro-ministro aos 47 anos, em 1999, sendo eleito em sequência para a presidência da Rússia. Reeleito em 2004, ficou no comando do país até 2008, quando voltou a ser primeiro-ministro. Retornou para a presidência em 2012 e renovou o mandato em 2018. Em 2021 sancionou emendas constitucionais que permitem uma extensão de sua presidência até 2036, quando terá 84 anos. Em pouco tempo ultrapassará a marca de Josef Stalin, que esteve no Kremlin de 1922 até 1953.

Entretanto ainda paira uma enorme dúvida sobre a definição correta a se referir a Putin: seria ele um autocrata ou um ditador no comando da Rússia? A maior parte da imprensa ainda prefere lidar com o líder do Kremlin como um autocrata, porém já passou da hora de nos perguntarmos se já foi ultrapassada a linha que divide autocracias e ditaduras e se o antigo agente da KGB já pode ser classificado como um ditador.

Ao final de 1999, a Rússia dava os primeiros passos dentro de uma democracia, mesmo com os erros de Boris Yeltsin e a ascensão de uma voraz e perigosa oligarquia que andava de mãos dadas com a máfia local, o país gozava de alguma liberdade, seja de expressão, imprensa, reunião e política, com diversos partidos e a formação de um Parlamento que tinha vez e voz. O desembarque de Putin em Moscou ocorre dentro desse cenário.

Sob seu comando, a Rússia começou a retornar diversas casas no jogo da democracia ao longo dos anos. Isso não ocorreu de forma abrupta. Ao contrário, foi uma construção desenhada com muito cuidado e atenção. Com trânsito no Ocidente e boa receptividade entre importantes líderes, Putin conseguiu transmitir uma imagem de um líder que, apesar de alguns excessos internos, mantinha a estabilidade política do país e colocava a Rússia como peça essencial do jogo de estabilidade internacional.

Assim, sob seu comando, a Rússia iniciou aproximação com o Ocidente, especialmente com europeus e americanos, trabalhando para transformar a imagem de seu país ao redor do mundo, uma leitura russa dos mecanismos de “soft power“. O país passou a atrair investimento externo e eventos que forneciam um status de nação preparada para o futuro, como competições esportivas de altíssima envergadura, como Jogos Olímpicos de inverno, corridas de Fórmula 1, torneios de tênis e uma Copa do Mundo.

Ao mesmo tempo, a Europa iniciou um processo de transição energética que passava pelas enormes reservas de gás russo e Putin soube usar esse poder como forma de se posicionar de forma estratégica neste jogo. Um modelo bem-sucedido que aliado ao alto preço do petróleo devolveu poder à Rússia na sua relação com a Europa, ao mesmo tempo que retornou ao eixo de poder da Ásia Central, retomando a influência política nos antigos países soviéticos.

Putin foi além e atraiu nomes estratégicos do Ocidente para fazer parte do conselho de empresas russas. Foi criado o termo Schröderizatsiya, que significa “líderes ocidentais que deixam cargos e criam laços com regimes autoritários e cleptocráticos”. A expressão surgiu para definir o ex-chanceler alemão Gerhard Schröder, conselheiro na petrolífera Rosnefte e do comitê da Gazprom. Porém, ele não foi o único. O francês François Fillon escolheu os conselhos da petrolífera Zarubezhneft e da petroquímica Sibur. Além deles, desembarcaram em conselhos um ex-presidente da Polônia, um ex-primeiro-ministro da Finlândia e uma linha inteira de políticos europeus.

Ao mesmo tempo que conseguia cooptar o Ocidente e se tornar uma peça importante do jogo geopolítico e econômico internacional, Putin passou a sentir maior liberdade para recrudescer o regime internamente. As liberdades foram desaparecendo aos poucos, assim como seus críticos, adversários e antigos aliados. A mortes suspeitas e estranhas de Alexander Litvinenko, Anna Politkovskaya, Natalia Estemirova, Stanislav Markelov, Boris Nemtsov, Sergei Yushenkov, Denis Voronenkov, Sergei e Yulia Skripal, Nikolai Glushkov e Yevgeny Prigozhin são apenas as mais conhecidas de uma longa lista que agora adicionou o nome de Alexei Navalny.

A anexação da Crimeia seguiu o modelo de reconstrução de uma hegemonia soviética que se impõe em suas diversas antigas repúblicas, hoje países independentes, porém tutelados por Moscou. O modelo adotado pelo Kremlin é apoiar essas nações enquanto permanecem na sua órbita e trabalhar para que seus governos permaneçam alinhados com a Rússia. Logo, diante do flerte ucraniano com o Ocidente e a queda do governo fantoche pró-Moscou, considerando a importância geopolítica e econômica estratégica de país, o Kremlin optou pela invasão. Essa é lógica sob a qual trabalha Vladimir Putin.

Para além da Ásia Central e da Europa, ainda precisamos falar do imperialismo russo na África, que vem ganhando contornos maiores e mais definidos com claras digitais do Kremlin nos diversos golpes ocorridos desde 2021, como aqueles que atingiram Guiné, Mali, Burkina Fasso, Níger, Chade, Sudão e mais recentemente o Gabão. Os golpes em sequência não são surpresas, uma vez que se revelam o resultado de um trabalho de longo prazo articulado por Moscou.

Todos esses movimentos recentes fizeram com que Putin se aproximasse ainda mais da esfera autocrática e totalitária, cortando os vínculos com o Ocidente, alinhando-se de forma sistemática com países como China, Irã, Coreia do Norte e demais nações do seu âmbito de influência, especialmente no Brics, que se tornou o novo fórum onde orbitam nações que vivem ou flertam com regimes autoritários. Isolado do Ocidente, o Kremlin sentiu-se livre para romper com qualquer traço de democracia ou liberdade que ainda restava em seu território.

O czarismo de Putin partiu de uma democracia e desaguou em uma ditadura. Hoje não há dúvidas de que a Rússia vive em um regime de exceção em que garantias e direitos fundamentais são sistematicamente desrespeitados pelo governo. O processo eleitoral se tornou uma farsa, assim como em Cuba ou Venezuela, eivado de ilegalidades e sem qualquer legitimidade, sem adversários ou disputa real de poder. O imperialismo se impõe de forma bruta e impiedosa sobre aqueles que discordam das diretrizes do Kremlin. Se a Rússia, que chegou a flertar com a democracia e navegou anos pelos mares incertos de uma autocracia, hoje se tornou uma ditadura sob o comando opressor de seu líder, aquilo que já podemos chamar de putincracia.

 

Márcio Coimbra é cientista político e presidente do Instituto Monitor da Democracia e conselheiro da Associação Brasileira de Relações Institucionais e Governamentais (Abrig)

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  1. Ditadura, sem dúvidas. Eleição fraudulenta alguma muda essa realidade. A implosão da URSS criou uma estreita janela para a implementação da democracia na Rússia. Mas a tarefa era muito difícil, já que faltava cultura democrática ao país, que de czares a tiranos comunistas, sempre viveu sob regimes totalitários, e soçobrou face à corrupção, atraso, força das oligarquias e surgimento de alguém capaz de mobilizar e manipular estas últimas inescrupulosamente.

  2. Triste realidade! Descreveu muito bem a tragédia que esse autocrata russo impõe à população! Que o mundo democrático abra bem os olhos. Hoje é a Ucrânia invadida, e amanhã?

  3. Não tenho dúvidas que Putin é um ditador. O que me assusta é que esse modelo está se firmando em muitos cantos pelo Mundo. Já ouvi especialistas em geopolítica acendendo a luz vermelha (nos dois sentidos) para o perigo de estarmos no mesmo caminho. Seja com Lula ou Bolsonaro. Extremistas são o problema.

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