O jogo do inquérito
No código de conduta militar, “espírito de corpo” é um valor que reflete o grau de “coesão da tropa” e de “camaradagem” entre seus integrantes. Nesta semana, os ministros Augusto Heleno, Walter Braga Netto e Luiz Eduardo Ramos, todos generais do Exército, demonstraram afinidade com a camaradagem, mas pecaram na coesão ao tentarem blindar Jair Bolsonaro na investigação sobre a tentativa do presidente de interferir politicamente na Polícia Federal com uma frágil narrativa forjada no Planalto. As contradições nas versões apresentadas pelo trio palaciano fizeram aumentar as suspeitas sobre a real motivação de Bolsonaro em mexer no comando da PF, especialmente na superintendência do Rio de Janeiro, seu reduto político.
Os elementos colhidos até agora no inquérito que tramita no Supremo Tribunal Federal, como os depoimentos e o vídeo da fatídica reunião ministerial do dia 22 de abril, reforçam as acusações feitas pelo ex-ministro Sergio Moro e pressionam o procurador-geral da República, Augusto Aras, a aprofundar a apuração para saber se o presidente cometeu crime comum, utilizando-se do poder em benefício próprio, ou crime de responsabilidade, atentando contra as instituições. Como em todo processo legal, cabe à acusação o ônus da prova. A dúvida, até aqui, é se o PGR, sabidamente leal a Bolsonaro, está empenhado em obtê-la.
Os depoimentos prestados pelos delegados da Polícia Federal e pelos ministros do governo já permitem uma conclusão inicial: enquanto Bolsonaro pressionava Moro pela troca do chefe da PF no Rio, o delegado Alexandre Ramagem, chefe da Agência Brasileira de Inteligência, a Abin, e amigo da família Bolsonaro, já sondava um delegado aliado para assumir a superintendência fluminense no lugar de Ricardo Saadi. Toda a trama ocorreu pelas costas de Moro e sem o conhecimento do então diretor-geral Maurício Valeixo. A questão a ser esclarecida pelos investigadores e cuja resposta pode resultar em uma acusação formal e, depois, até em um processo de impeachment contra o presidente, é a motivação.
Juristas ouvidos por Crusoé afirmam que a conduta pode levar ao enquadramento do presidente no crime de advocacia administrativa, um dos oito sob investigação no inquérito – os outros são falsidade ideológica, coação no curso do processo, prevaricação, obstrução de Justiça, corrupção passiva privilegiada, denunciação caluniosa e crime contra a honra. O crime de advocacia administrativa ocorre quando alguém intercede junto a uma autoridade pública para obter vantagem pessoal. Para que ele reste configurado, porém, é preciso que haja materialidade, como uma prova de que Bolsonaro quis intervir na PF para interceder em uma investigação específica, por exemplo.
“Pode haver uma infração de ordem moral e ética, mas para que tenha crime é preciso provar que tenha havido um pedido para intervir em algo concreto em benefício próprio”, argumenta o criminalista e professor Pierpaolo Bottini. Para Miguel Reale Júnior, um dos autores do pedido de impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, em 2015, o que já veio a público mostra que Bolsonaro excedeu os limites da lei. “Ele interferiu na Polícia Federal para beneficiar sua família. É uma interferência em outro poder, porque a PF é uma polícia judiciária, um braço da Justiça. Tudo vai depender de o Aras ser omisso ou não. Eu sofri na pele com um procurador-geral omisso, que era o (Geraldo) Brindeiro”, afirmou o jurista, que foi ministro da Justiça em 2002, no governo Fernando Henrique Cardoso.
Há 28 anos, quando o Brasil discutia o impeachment de Fernando Collor, quem exercia o cargo hoje ocupado por Aras era o ex-procurador Aristides Junqueira, o primeiro na história do país a denunciar um presidente da República no exercício do mandato, em novembro de 1992. Junqueira prega prudência neste momento e afirma que uma denúncia contra o chefe da nação deve estar bem embasada. Mesmo com todas as provas de corrupção contra Collor no caso PC Farias, o ex-presidente foi absolvido pelo STF dois anos depois de renunciar ao mandato em meio ao processo de impeachment. “Naquela época não se discutia as provas, mas aqueles que foram contrários à denúncia argumentaram que as atitudes do ex-presidente foram apenas imorais, e não crime. Agora, a gente sabe o presidente pode trocar quem ele quiser, é a prerrogativa dele. É preciso saber qual a real motivação”, afirma Junqueira.
Em outra via, caso Aras conclua que o presidente não cometeu um crime comum, mas crime de responsabilidade, ele próprio, ou qualquer outro cidadão, pode formalizar um pedido de impeachment no Congresso. Nesse caso, o julgamento é exclusivamente político, a partir da abertura de um processo de afastamento feita pelo presidente na Câmara, também com maioria qualificada, e a votação final pelo Senado, a exemplo do que ocorreu com Dilma em 2016. Se o procurador arquivar o inquérito, inocentando o presidente, qualquer pedido de impeachment relacionado ao conteúdo da investigação perde força. Hoje, no Congresso, poucos apostam que um processo de impeachment avançaria, mas essa leitura é sempre acompanhada de uma ressalva: a depender do que vier na investigação e, principalmente, se houver pressão popular, o clima pode mudar.
O papel de Aras é crucial porque se, ao final da investigação, ele decidir pelo arquivamento, Celso de Mello pouco ou nada pode fazer. Mas, daqui até lá, o ministro tem margem para deixar suas impressões bem demarcadas – e, em último caso, até instar o procurador-geral a apresentar denúncia. Para isso, basta que, a partir de sua posição de relator, ele destaque a gravidade do que for surgindo, caso assim entenda. Conhecido pela contundência com que interpreta os malfeitos do poder – vide seus votos em julgamentos emblemáticos do mensalão e do petrolão, por exemplo –, o ministro pode num simples despacho criar um embaraço para Aras perante a opinião pública. É verdade que o ministro é conhecido no meio jurídico por exigir provas robustas em procedimentos criminais, mas quando entende que elas existem, costuma responder com firmeza. “Acredito que ele não vai deixar pedra sobre pedra”, diz um velho conhecido e colega de toga de Mello.
A despeito dos sinais, o entorno de Bolsonaro se move com preocupação. Teme que, com o avanço da apuração, surjam elementos capazes de elevar a pressão sobre o procurador. Oficialmente, o discurso do próprio presidente e de seus auxiliares é no sentido de não haver razões para preocupação porque não haveria provas. Nos bastidores, porém, as engrenagens se movem com cautela. Justamente por conhecer bem as possíveis implicações legais e políticas da investigação, a cúpula palaciana afinou o discurso nesta semana e tentou emplacar uma narrativa única sobre as ações de Bolsonaro junto a Sergio Moro.
Na última edição, Crusoé mostrou que Jair Bolsonaro tinha interesse em controlar mais proximamente a superintendência da Polícia Federal no Rio porque se via em guerra com o governador do estado Wilson Witzel, seu adversário político. Ele entendia que Witzel estaria usando o aparato de segurança do estado para atingir politicamente sua família – e queria responder na mesma moeda, por meio da Polícia Federal. A ideia era se antecipar aos movimentos do governador e, ao mesmo tempo, ter acesso a informações de inteligência que poderiam ser usadas para atingi-lo. “Ele quer transformar a polícia judiciária, um órgão do estado, em polícia pessoal. Isso é uma característica cruel de ditaduras”, afirma Miguel Reale Junior.
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