Foto: ReproduçãoO novo (à esquerda) e o velho logo do Twitter: linchamento moral prepondera sobre a liberdade individual nas redes

O xis da questão das redes sociais

Facebook, Twitter e assemelhados às vezes oferecem vislumbres de nossa generosidade, mas isso não os redime do veneno que trouxeram para o debate público
28.07.23

O nome foi decidido no trajeto de carro entre o abrigo e nossa casa: Cacau. Era uma filhote de dois meses, uma vira-lata marrom. Em um sábado à noite, entrou faceira no apartamento e correu atrás de Pipoca, a gata, que se mostrou indignada com a vulgar expansividade da recém-chegada. Cacau dormia bastante, como é próprio de cães de idade tão tenra, mas na manhã de segunda-feira notamos que estava mais desanimada, prostrada até. Outro sintoma levantou o alarme: um traço de sangue nas fezes. Corremos para a clínica veterinária. Parvovirose. Internação imediata. As veterinárias foram incansáveis, mas não estava ao alcance delas: no quinto dia de internação, Cacau morreu.

No Facebook, publiquei um relato mais triste e pessoal da morte de Cacau, com uma foto em que ela aparece com aquele olhar pidão de que só os cães são capazes. Fiquei tentado a reproduzir o post como abertura deste texto, mas uma coluna na imprensa não é espaço apropriado para esse gênero de emotividade. Só falo do caso porque a resposta ao post me reconfortou. Amigos próximos, conhecidos com quem cruzei umas poucas vezes em ocasiões sociais e completos desconhecidos vieram oferecer solidariedade e falar dos bichos que eles próprios já perderam.

Tenho visto essa extraordinária generosidade sempre que um amigo de rede social perde seu gato ou cachorro. É claro que o mesmo se dá quando as pessoas perdem pai, mãe, irmão, filho, um colega de trabalho, um professor marcante. Quando o morto é uma pessoa, porém, os códigos sociais exigem reverência e decoro. É verdade que os animais não humanos ganharam status mais elevado em anos recentes, mas ainda continua aceitável dar de ombros para a morte precoce de uma vira-lata. No entanto, nunca vi, no Facebook, alguém trivializar a dor da perda porque afinal se trata “só” de um animal de estimação.

Na minha infância, quando uma família perdia pessoas queridas, parentes e amigos que moravam longe mandavam telegramas de condolências, todos breves e secos porque a tarifa era por letra (e ninguém se deu ao trabalho de escrever quando meu cachorro Trambique foi atropelado). Hoje, pessoas que moram em outro continente escrevem coisas significativas que podemos ler quase imediatamente.

Parece que estou referendando a publicidade kitsch do Facebook, que insiste em que a criatura de Mark Zuckerberg está aí para “conectar” as pessoas. Não: apresento uma exceção — um vislumbre de humanidade soterrado pela cacofonia on-line. As linhas de conexão que nos trazem conforto em horas difíceis representam fios perdidos na vastidão das redes sociais. Minha própria experiência no Facebook não é tão positiva. Já me meti nos mais estúpidos bate-bocas com gente que não conheço e com gente que conheço, mas não respeito. A responsabilidade é minha, claro — mas a dinâmica dessas tretas foi produzida pelas redes.

Os males das redes sociais me parecem mal compreendidos. Tem carradas de exagero e distorção nos relatos sobre o dano que elas causaram às democracias. Um bom exemplo é a lenda de que a Cambridge Analytica, empresa de big data, teria sido decisiva para a vitória do Brexit no Reino Unido, em 2016, e de Donald Trump nos Estados Unidos, no mesmo ano. Com acesso ilegal a dados de 50 milhões de usuários do Facebook, a empresa teria projetado propaganda individualizada — microtargeting, no jargão publicitário — para converter eleitores indecisos. Uma investigação de três anos conduzida pela ICO, agência britânica que fiscaliza a privacidade de informações na internet, concluiu que na verdade a Cambridge Analytica teve efeito nulo nas votações britânicas e americanas. Resta, porém, o fato de que o Facebook entregou ilegalmente dados de seus clientes para a Cambridge Analytica — pelo que foi multado no Reino Unido e nos Estados Unidos.

O histórico político das redes sociais não pode ser redimido pelas janelas de solidariedade que nelas encontramos em alguns momentos difíceis. Tampouco deve ser resumido ao alegado papel que tais redes tiveram na eleição deste ou daquele político não muito democrático. É bem mais amplo do que isso: o mal está no apagamento generalizado da linha que separa o fato da opinião, no sectarismo das bolhas ideológicas, na cultura do meme e do cancelamento.

Em tese, a rede social seria a realização última da livre troca de ideias: um meio no qual qualquer pessoa, independentemente de sua ideologia, etnia, religião, classe social ou QI, pode expressar suas opiniões. Mas o pensamento de rebanho e o linchamento moral preponderam sobre a liberdade individual.

Há ainda os indevassáveis mecanismos de mediação, que cassam publicações e publicadores com base em regras de uso que ninguém conhece. Elon Musk adonou-se do Twitter com a promessa de fazer diferente: criaria uma rede libertária. Mas tem se tornado cada vez mais claro que a liberdade que ele defende vale só para seu próprio pensamento. Semanas antes de inexplicavelmente converter o Twitter em X, o bilionário publicou um tuíte (agora se diz xite ou xiste?) cheio de ameaças aos usuários malcomportados, no qual decretava que o adjetivo “cisgênero” seria considerado difamatório em sua rede. Nunca empreguei essa palavra tolinha — a não ser para fins paródicos —, mas tive de resistir à tentação pueril de tuitá-la (xizá-la?), só para quebrar as regras.

Sou cético sobre regras ou regulações. Com muita facilidade, elas se tornam censórias, sem nem por isso deterem o poder de mudar a natureza nefasta das redes sociais. Que é talvez a nossa própria natureza: o poder que as redes acumulam lhes foi outorgado por nós, seus usuários. Eu, hipócrita que sou, não cogito deixá-las, e não porque muito eventualmente elas me dão a esperança de um mundo no qual se pode contar com a bondade de estranhos. Ocorre que é nelas que divulgo meu trabalho — esta coluna, por exemplo —, sempre, admito, à espera desta recompensa ilusória que é a “curtida”, moeda corrente de nosso valor social.

 

Jerônimo Teixeira é jornalista e escritor

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