Foto: Marcos Santos/USP Imagens"Olha a banana democrática, freguesa! Moça progressista não paga, mas também não leva! Fascistas não passarão!"

Chegou delícia, chegou qualidade, chegou democracia!

Deus nos livre a mim, ao povão e às colunistas de esquerda de sair por aí comprando cigarro, carro, geleia ou qualquer outro treco não democrático
28.07.23

Já faz algum tempo, ó leitor amigo, que cheguei à idade em que a televisão funciona como… eu ia dizer “como um narcótico”, mas reconheço que não soa bem, então reformulo: funciona como sonífero. Rara é a vez em que me sento diante da caixinha mágica (que deixou de ser caixinha, virou caixote, depois contêiner e se encaminha para ser telão de cinema: já até a andam pendurando na parede) sem que algo aconteça às minhas pestanas e elas resolvam por si sós que o expediente acabou, e eu acabe adormecendo. É da idade, dizem, e aceito. Mas é fato também que, antes de pegar no sono, eu consigo dispensar à tela uns cinco ou seis minutos de atenção, suficientes para saber o nome do filme, da série, do programa ou dos que se enfrentam no jogo que vai me dopar.

Noutro dia, justamente durante essa janela curta de vigília, vi uma propaganda na TV que me chamou a atenção e adiou a crise narcoléptica por alguns instantes. A tal propaganda anunciava um produto qualquer que tinha, dentre muitas outras virtudes, esta: ser democrático. Isto mesmo: democrático. Não lembro mais se a propaganda era de cigarro, mas, se fosse, o cigarro era democrático: cada tragada seria cheia de fumaça, nicotina, alcatrão e democracia. Ou seria propaganda de carro? Um carro democrático: aquele cavalo de pau na praia ao entardecer seria um cavalo de pau totalmente democrático; aquela acelerada louca no mato (é off road que se diz, né?) seria uma acelerada superdemocrática. Ou talvez fosse anúncio de geléia de mocotó, geleia democrática, feita do mocotó democrático, tirado de algum boi ou vaca bem democráticos: aquela lambuzada na torrada seria, ó, uma lambuzada — como dizem as novas colunistas sociais de esquerda — democratiquéééérrima.

Achei acertado, até prudente, da parte do anunciante avisar isso aí. Porque Deus nos livre a mim, ao povão e às novas colunistas sociais de esquerda de sair por aí comprando cigarro, carro, geleia de mocotó ou qualquer outro treco não democrático. Pior: cigarro, carro, geleia de mocotó ou qualquer outro treco ditatorial. Autoritário. Aristocrático. Elitista. Golpista. Fascista. Ou qualquer que seja o antônimo de democrático em voga. Graças ao anúncio, ficamos livres desse — ao menos desse — risco. Na hora em que a polícia bater na nossa porta, sempre poderemos dizer: mas falaram que era democrático, caramba!

Mas também é bom pelo seguinte: cria um hábito. E o hábito logo se espalha. Daqui a pouco, toda propaganda vai qualificar lá seu produto como democrático. Macarrão? Democrático. Manteiga? Democrática. Tinta de pintar parede? Democrática. Chinelo? Democrático. Sabonete, xampu, creme hidratante? Democráticos. Faqueiro? Democratiquéééérrimo. Já vejo até a criação de um órgão verificador, um IVD (Instituto Verificador de Democracia) que dê um selo de autenticidade democrática para botar nas embalagens. Seu café, seu açúcar, seu feijãozinho maravilha, seu telefone celular ostentarão, orgulhosos, um selo de “produto autenticamente democrático”. Para a segurança do consumidor.

Olhe, vou além. Já ouço o brado dos feirantes: “Olha a banana democrática, senhora! Olha o tomate democrático! Não faz fiado e não vende pra fascista!”. Ou o pregão dos marreteiros no trem e no metrô: “Chegou delícia, chegou qualidade, chegou democracia! Lá fora pelo preço abissurrrrdo de cinco reais, mas na minha mão democrática com dois reais leva três!”. Três o quê? Ora, três chocolatinhos democráticos, três pomadas democráticas para cavalo, três fones de ouvido falsificados porém democráticos.

Essa parte da feira e do metrô talvez esteja fora do escopo das novas colunistas sociais de esquerda — aliás, um colunismo de esquerda só pode mesmo ser social, né? —, que talvez não o possam louvar adequadamente. Pena, pena. Mas podem louvar a propaganda, o selo de verificação, a parte, enfim, oficial da coisa.

Quanto a nós, amigo, alegremo-nos com essas alvíssaras todas das propagandas. Porque cá no nosso nível é assim: rejoice, rejoice, we have no choice.

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  1. Já está no mercado desde janeiro/2023 algo muuuito democrático, mas pensado democraticamente para uso exclusivo pela classe média pagadora de impostos: o super-supositório “DOTADÃO” cuja grossura é a de uma berinjela das grandes. Use sem moderação. Coisa do 👿… do DEMOGracinha…

  2. OH! Tosetto! nas primeiras frase já comecei a rir. Depois, confesso, troquei o sorriso pelo choro, pois sei que isso é uma verdade na beira de acontecer!

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