Foto: Agência BrasilRoberto Campos Neto, do BC: denúncia ao TCU se parece muito com intimidação às vésperas da reunião do Copom

Vade retro, “harmonia”

A ideia de “harmonia” confundida com a ausência de controles, de oposição e de opiniões divergentes nunca serviu a nenhuma democracia
28.07.23

O ministro Fernando Haddad tem afirmado que o momento positivo do país se deve à harmonia entre os Poderes. Objetivamente, ele se refere a um estado de colaboração entre os principais atores políticos para a aprovação de medidas econômicas. O patinho feio dessa concertação seria o Banco Central (BC) e sua decisão de manter os juros no patamar atual, como o ministro e o presidente Lula têm reclamado publicamente. Por isso, chama a atenção o pedido de investigação feito pelo Tribunal de Contas da União (TCU) contra o presidente Roberto Campos Neto por uma entrevista na qual ele aventa a possibilidade de transferir a gestão de parte das reservas internacionais do país para o setor privado. A “denúncia”, feita às vésperas da reunião do Copom que decidirá a taxa Selic, pode ser vista como uma tentativa de intimidação contra o BC? E, dentro de um contexto ampliado, como essa discussão se insere no tema da “harmonia” e do funcionamento da democracia brasileira?

Antes de entrar no caso concreto, é preciso falar da questão da “harmonia”, sempre tratada assim, entre aspas. O termo foi desgraçadamente acrescentado à Constituição de 1988 como sendo um predicado obrigatório da relação entre o Executivo, o Legislativo e o Judiciário. Isso é um problema na medida em que a divisão do poder em múltiplas instâncias que devem se controlar mutuamente é, por natureza, conflituosa. Nesse sentido, considerando que ninguém gosta de ser vigiado, especialmente autoridades públicas, é o conflito feito dentro dos limites institucionais, e não a “harmonia”, o remédio que previne o exercício abusivo do poder. A divergência, e não a convergência, é o elemento depurador das decisões de políticas públicas. Ou, nas palavras de Nelson Rodrigues, deve-se lembrar que “toda unanimidade é burra”.

Trazendo o debate para a vida real, o leitor pode acessar notícias sobre um escândalo ocorrido no Amapá nos idos de 2010 protagonizado por um conjunto de autoridades que se proclamava “o grupo da harmonia”. Uma matéria do jornal O Estado de S.Paulo da época fez o seguinte diagnóstico para explicar o que levou à situação de prisões generalizadas no estado: “Oposição enfraquecida, cooptação de lideranças dos poderes que deveriam fiscalizar o Executivo, pouco espaço para denúncias na imprensa local”. Sabendo que ao político, qualquer um, interessa o consenso e o poder sem limites, o seu controle a partir de um conflito entre forças opostas é a única proteção da sociedade. Não é exagero dizer que essa dicotomia é o que mantém a árvore da democracia de pé —aqui e em qualquer lugar.

Mas voltando a Campos Neto e ao BC: em 26 de junho, o jornalista Júlio Wiziack, da Folha de S. Paulo, escreveu que “aliados do presidente Lula avaliam usar um processo do TCU contra o Banco Central para forçar a saída de Roberto Campos Neto, presidente da autarquia, caso ele continue resistindo à redução da taxa básica [Selic]”. O processo em questão era sobre balanços contábeis da gestão da reserva cambial brasileira. A denúncia atual, feita um mês depois pelo subprocurador Lucas Rocha Furtado, se deu, como dito acima, em razão de uma ideia ventilada por Campos Neto em uma entrevista. Segundo relatou a CNN em 24 de julho, o tribunal “irá apurar se há irregularidades no plano de passar à iniciativa privada a gestão de parte dos ativos sob administração do banco”. O problema é que, até onde se sabe, não há plano, não há nada: apenas a introdução de um debate que, a princípio, não teria barreiras legais para ocorrer.

Essa dinâmica se parece com a mesma que ocorreu no final do primeiro semestre durante o processo de aproximação entre o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e o Planalto. Paralelamente às negociações políticas, ocorreram denúncias, arquivamentos e a interrupção de investigações de mau uso de dinheiro público por pessoas ligadas a Lira no passado. Apesar de o alagoano nunca esconder que poderia organizar a base de Lula entre os deputados, muitos analistas avaliaram que o vaivém do escândalo deu vantagem ao petista nas negociações, considerando a situação de vulnerabilidade pública e jurídica do presidente da Câmara. Fato da vida é que a figura altiva e independente de Arthur Lira no início do ano em nada lembra o presidente que também comemora a “harmonia” hoje.

Ninguém em sã consciência pode dizer que há um arranjo de investigações com o objetivo de obter colaboração. A listagem de fatos e opiniões da imprensa nada mais é do que um mosaico para alertar que essa ideia de “harmonia”, confundida com a ausência de controles, de oposição e de opiniões divergentes, não serve e nunca serviu a nenhuma democracia. Sabe-se lá a intenção de Haddad em usar o termo sem cuidado; no fundo, ele deve saber que foi a atuação do BC, e não a reforma tributária e o novo arcabouço fiscal, que ancorou principalmente as expectativas da inflação. Nesse caso, é o dissenso, e a autonomia institucional que o permitiu, o fato que deve ser celebrado.

 

 

Leonardo Barreto é doutor em ciência política pela UnB (Universidade de Brasília)

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  1. A harmonia dessa máfia irá plantar provas contra Campos Neto para tirá-lo do BC. Não fizeram isso com Deltan? Condenado por suposições.

  2. A harmonia propalada por ptralhas nada mais é que um esquema de conluio para implementar a venezuelização do país, e todo aquele que não estiver no contexto de aparelhamento do Estado é perseguido com o beneplácito das altas cortes contaminadas e promiscuídas.

  3. A "harmonia" entre os poderes só serve para favorecer a corrupção. Não existe harmonia entre poderes independentes. Se existe, é porque estão corrompidos.

  4. Realmente. A harmonia entre os poderes se baseia mais na mútua blindagem, garantindo os excessos ou malfeitos do que no trabalho conjunto para o progresso da nação. Daí vemos a anulação de provas, e julgamentos, orçamento exorbitantes, aparelhamento generalizado, abuso de poder, ...

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