DiogoMainardina ilha do desespero

Coluna infame

03.04.20

Alessandro Manzoni. História da coluna infame. É a melhor coisa jamais escrita sobre a epidemia de peste. Na verdade, sobre qualquer epidemia. Vou reproduzir aquilo que, no século passado, publiquei sobre ele. Pode ser que os leitores da Crusoé não tenham o menor interesse pelo assunto, mas desconsiderar a opinião dos leitores é uma forma de isolamento social, que tenho praticado com fanatismo desde que ela foi decretada aqui em Veneza, na segunda-feira de Carnaval. Resista:

Milão.

Em junho de 1630, durante a epidemia de peste (mais de mil mortos por dia), uma mulherinha (no original italiano, Alessandro Manzoni emprega o termo donnicciola) chamada Caterina Rosa observa da janela que um homem de manto preto esfrega as mãos nos muros de sua rua. Ela logo desconfia que se trata de “um daqueles que costumavam ungir as muralhas”. Ou seja, segundo uma antiga crendice, um agente diabólico intencionado a disseminar a peste.

De fato, Caterina Rosa nota que os muros pelos quais o homem passa ficam borrados de uma suspeita banha de coloração amarelada. A notícia corre de boca em boca, surgem novas testemunhas (uma das quais se chama Ortensia, nome flóreo como o de Caterina Rosa), acrescentam-se detalhes incriminatórios.

No dia seguinte, as autoridades sanitárias decidem investigar o caso. A partir da denúncia de Caterina Rosa, descobrem que o homem acusado de ser o untor é um comissário de saúde, um certo Guglielmo Piazza, “genro da comadre Paola”.

Os magistrados submetem-no a um longo interrogatório. Como ele insiste em declarar-se inocente, começam a torturá-lo com um laço que desloca as articulações das mãos e dos braços (ligatura canabis). Manzoni: “Ah, meu Deus!… cortem minha mão… me matem… não sei de nada… já disse a verdade”.

Na terceira sessão de torturas, os magistrados prometem-lhe a liberdade em troca de uma confissão completa. Disposto a inventar qualquer história desde que cessem os tormentos, Guglielmo Piazza declara que o unguento maléfico fora-lhe dado por um barbeiro chamado Giacomo Mora.

Ao revistarem a loja deste último, as autoridades sanitárias encontram dentro de um caldeirão restos de uma misteriosa matéria viscosa e amarelada. O barbeiro afirma tratar-se de mera barrela para a lavagem de roupas, mas os magistrados não acreditam, solicitando o parecer de duas lavadeiras (uma delas chama-se Margherita, mais uma flor). Depois de analisarem a matéria viscosa e amarelada, as lavadeiras concluem que aquela barrela havia sido adulterada com alguma “patifaria”.

Giacomo Mora é torturado. Não resistindo à dor, assume a autoria do crime. De acordo com sua confissão, o unto amarelado fora feito com a saliva infectada que o comissário de saúde Guglielmo Piazza recolhera da boca dos cadáveres pestilentos. À saliva, haviam sido adicionados barrela e esterco humano.

O tribunal decreta a sentença de morte contra os untores. No dia 2 de agosto de 1630, um carro de boi os conduz até o patíbulo. Depois de serem marcados com ferro fervente no local do delito, sofrem a amputação da mão direita e o suplício da roda, durante o qual seus ossos são fraturados. Ainda vivos, permanecem de ponta-cabeça por seis horas. A seguir, o carrasco os degola. Os cadáveres são queimados e as cinzas jogadas no rio. A casa de Giacomo Mora é demolida; em seu lugar, erige-se a chamada “coluna infame”, com uma inscrição que recorda o crime pelo qual haviam sido injustamente condenados.

A crença segundo a qual agentes diabólicos tramavam para semear a peste era bastante difusa. Porém os eventos milaneses não se limitam a demonstrar o obscurantismo de uma época. No caso, a boçalidade de Caterina Rosa assume uma configuração bem mais sinistra. Com a ação do tribunal de saúde, que obtém falsas confissões através de tortura, as crendices da multidão ignorante são homologadas, legitimadas, dotadas de arcabouço legal. Desse modo, a irracionalidade de Caterina Rosa contamina o terreno da justiça, destruindo-a.

O tratado em que Alessandro Manzoni reconstrói os eventos milaneses intitula-se História da Coluna Infame”. Ele escreve: “(Caterina Rosa) havia sido a primeira causa do processo, assim como era ainda seu regulador e modelo (…). Não é estranho que um tribunal se torne seguidor e acólito de uma ou duas mulherinhas (donnicciole), pois quando se penetra na estrada da paixão é natural que os cegos guiem”.

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