Propina com foro
A família Zveiter é um das mais poderosas no meio jurídico do Rio de Janeiro. O patriarca, Waldemar Zveiter, foi desembargador no Tribunal de Justiça fluminense e ministro do Superior Tribunal de Justiça, indicado pelo ex-presidente José Sarney. Dono de um famoso escritório de advocacia, o clã também ocupa cargos destacados na política e na superestrutura que comanda o esporte nacional. Sérgio, um dos filhos de Waldemar, foi secretário estadual, deputado federal e presidente do Superior Tribunal de Justiça Desportiva, o STJD, que já teve outros familiares dele entre seus integrantes.
Luiz Zveiter, o primogênito, seguiu os passos do pai e é o decano do TJ do Rio, onde integra o órgão especial, encarregado de julgar personalidades com foro privilegiado. Ele chegou à corte em 1995 pelo quinto constitucional, sistema pelo qual a OAB pode indicar uma parcela dos magistrados de tribunais. Ao longo dos últimos anos, Luiz Zveiter foi alvo de representações no Conselho Nacional de Justiça, o CNJ, por suspeitas diversas, de ajuda para amigos em concurso público a favorecimento a empresas clientes da banca de sua família. O rol inclui ainda irregularidades em licitações no TJ quando ele presidiu a corte, de 2009 a 2010. Todos os procedimentos foram arquivados ou estão estacionados nas gavetas do órgão que deveria fiscalizar a conduta de juízes brasileiros.
Um dos casos envolve a concorrência para a construção de um dos edifícios da sede do tribunal e foi remetido aos arquivos do CNJ recentemente. O conselho negou a abertura de um modesto processo administrativo disciplinar para averiguar a conduta do desembargador. Na última semana, porém, o ministro Edson Fachin enviou ao STJ um cartapácio com informações que podem mudar o rumo da história.
Integram o pacote dois inquéritos abertos com base no acordo de colaboração de Sérgio Cabral, ex-governador do Rio que tinha em Zveiter um de seus principais aliados no Poder Judiciário. Um desses inquéritos tem potencial para não apenas reabrir o caso no CNJ como, em paralelo, gerar problemas de ordem criminal para o desembargador carioca.
O material contém relatos acerca da contratação da Delta Engenharia, do multi-enrolado empreiteiro Fernando Cavendish, pela gestão de Zveiter na presidência do TJ, e traz uma acusação grave. De acordo com o relato de Cabral, ao qual Crusoé teve acesso, o empreiteiro pagou 10 milhões de reais para levar a obra, prevista para custar 141 milhões de reais e que extrapolou em muito os valores contratados.
O relato vai ao encontro das conclusões de uma auditoria realizada pelo Tribunal de Contas da União e pela Controladoria-Geral da União que esmiuçou os custos da obra e apontou um “sobrepreço global” estimado em 15,8 milhões de reais.
A partir daí, a amizade com Luiz Zveiter foi se estreitando até que, em 2009, o desembargador lhe teria feito um pedido especial. Àquela altura, Cabral já era governador. Ele diz que Luiz Zveiter o procurou em busca de ajuda: queria se aproximar de Cavendish. A Delta Engenharia, uma das empresas prediletas de Cabral, vivia o auge de sua existência, com contratos milionários em várias partes do país – só anos mais tarde os métodos da empreiteira viriam a ser conhecidos.
O TJ do Rio tinha colocado na praça uma licitação para a construção de mais um prédio em seu complexo. Cabral atendeu o pedido do desembargador e acionou Cavendish de pronto. O assunto da conversa era justamente a concorrência. Segundo Cabral, o empreiteiro se animou com o interesse de Zveiter, principalmente porque a obra seria custeada com dinheiro do Fundo Estadual de Justiça e, portanto, dificilmente haveria atraso nos pagamentos.
É aí que Cabral começa a detalhar a grave acusação ao desembargador, até há pouco um de seus mais fiéis amigos. O ex-governador afirma ter ouvido de Zveiter, ainda no período em que a licitação estava em curso, que uma empresa “abusada” estava tentando entrar no jogo e atrapalhar o processo. Essa empresa teria sido “retirada” do páreo por decisão de Zveiter, então presidente da corte.
A partir de então, o caminho estava aberto para a Delta, que ganhou a concorrência e executou a obra – não sem pagar a milionária propina. Cabral diz que “no decorrer das obras, tanto Cavendish quanto Luiz Zveiter demonstraram que o acordo havia dado resultado”. O empreiteiro, na versão do político, comentou algumas vezes que a obra andava rápido porque o “fluxo de pagamentos não era interrompido”.
Cabral relata que Cavendish lhe falava, à altura dos acontecimentos, da “satisfação dos pagamentos em dia” e, nesse contexto, fez a ele o relato sobre o pagamento de 10 milhões de reais a Zveiter. O magistrado, segundo o governador, dizia que Cavendish era “sujeito homem”, que honrava os compromissos. E comemorava o acerto afirmando que o negócio tinha saído “até barato” – sim, ele considerou a propina uma pechincha – se fossem levados em conta o valor da obra e a pontualidade dos pagamentos do TJ à Delta.
Edson Fachin também enviou ao tribunal um relatório de Polícia Federal que corrobora o relato do ex-governador. Os investigadores confrontaram as afirmações de Cabral com informações conhecidas sobre a licitação para aferir se o que ele dizia tinha sentido. Encontraram os registros da disputa vencida pela Delta, cujo resultado foi publicado em julho de 2010, e pesquisaram as circunstâncias em que outra empresa, a Paulitec, foi limada da concorrência. Era, ao que tudo indica, a tal construtora “abusada” que queria atravessar o negócio.
A Paulitec, observam os policiais no relatório, chegou a ser declarada vencedora da licitação dois meses antes de o contrato ser entregue à Delta. Ela acabou saindo do jogo em razão de mudanças de última hora no edital. As tais mudanças levaram à realização de um novo processo de licitação, finalmente vencido pela empresa de Fernando Cavendish.
A PF também levantou os valores pagos pelo TJ à construtora: 268 milhões de reais. O documento conclui que “existem elementos que corroboram a narrativa de direcionamento de licitação para a Delta, tendo sido possível identificar a empresa adjetivada de ‘abusada’ no termo de colaboração como sendo a Paulitec”.
Como Crusoé já mostrou, a mesma delação que traz as suspeitas sobre Zveiter inclui acusações contra dois ministros do STJ, a corte que agora recebe o capítulo sobre o desembargador carioca. São citados os ministros Napoleão Nunes Maia Filho e Humberto Martins. Corregedor-nacional de Justiça, cargo que lhe confere as atribuições de xerife do Judiciário, no CNJ Martins votou pelo arquivamento da apuração disciplinar que ligava Zveiter a irregularidades na licitação.
Procurada por Crusoé, a defesa de Luiz Zveiter afirmou que ele nunca esteve com Fernando Cavendish e que manteve apenas contato institucional com Sérgio Cabral quando ele era governador do Rio de Janeiro. O advogado Pierpaolo Cruz Bottini disse que, embora a licitação tenha ocorrido quando o tribunal esteve sob a presidência do desembargador, apenas uma parte pequena do valor do contrato, 1 milhão de rais, foi paga no período. O restante, afirma, teria sido repassado pelos presidentes que o sucederam. O advogado disse ainda que a concorrência foi esmiuçada pelo CNJ, que não encontrou irregularidades, e que o próprio Cavendish, em depoimento, afirmou não conhecer Zveiter e negou ter pago propina pela obra.
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