Divulgação"Neste momento (a doença) está mudando a história. O que vai acontecer a longo prazo só o tempo vai dizer"

A epidemia em perspectiva

Estudioso das epidemias que marcaram a história, o infectologista Guido Levi diz que ainda há um "longo caminho" pela frente no combate ao coronavírus e defende as medidas de contenção adotadas até agora
20.03.20

Pela primeira vez em 45 anos de ofício, o médico Guido Carlos Levi “fugiu” de uma epidemia. Na última quarta-feira, 18, um dos principais infectologistas do país deixou seu consultório em São Paulo para se isolar em um sítio a 70 quilômetros de distância, no interior paulista. O autoconfinamento foi uma decisão difícil, mas necessária diante do novo flagelo mundial que já causou mais de 10 mil mortes. No Brasil, os primeiros óbitos ocorreram nesta semana. Aos 78 anos de idade e com um recente episódio de arritmia cardíaca, Levi figura no grupo de risco do novo coronavírus, o que o obrigou a largar o jaleco branco por pelo menos um mês.

A precaução do médico que já combateu doenças epidêmicas que aterrorizaram a população, como varíola, sarampo e Aids, revela a gravidade da Covid-19. Membro da Sociedade Brasileira de Imunização, Levi lembra dos atendimentos feitos em leitos improvisados no estacionamento do hospital Emílio Ribas, do qual já foi diretor, durante a grande epidemia de meningite em 1974. Com a experiência de quem enfrenta há décadas moléstias infecciosas, ele não enxerga histeria na condução das medidas contra a atual pandemia. Nesta entrevista a Crusoé, Levi elogia as medidas restritivas de isolamento social já adotadas em alguns estados brasileiros e traça um diagnóstico pouco animador. Para ele, “ainda temos um longo caminho pela frente” no combate ao vírus e o número de contaminações “vai crescer vertiginosamente nas próximas semanas”.

Em 2018, Guido Levi uniu duas grandes paixões, a medicina e a história, no livro Doenças que mudaram a história, obra na qual relata como enfermidades como o escorbuto e a cólera alteraram o destino de povos e nações ao longo dos séculos. Para ele, ainda é preciso observar como os países vão sair da nova pandemia, para saber se a Covid-19 entrará para esse grupo de doenças que deixaram cicatrizes na humanidade. De qualquer forma, o infectologista sustenta que qualquer comparação entre a taxa de mortalidade do coronavírus e a de outras epidemias que vitimaram milhares de pessoas, como a H1N1 de 2009 ou a gripe espanhola de 1918, é um “desserviço” prestado por quem quer negar a realidade. O mais preocupante agora, diz, é a velocidade de propagação do novo vírus, o que pode colapsar sistemas de saúde pelo mundo. A seguir, os principais trechos da conversa.

Diante do quadro de pandemia e do impacto causado pelo coronavírus, já é possível dizer que a Covid-19 é uma doença que vai mudar a história?
A gente não pode adivinhar, mas neste momento está mudando a história. O que vai acontecer a longo prazo só o tempo vai dizer. Se os países que estavam bem vão cair por causa da epidemia, isso não é rápido. Ainda temos um longo caminho pela frente. Nós temos meses de epidemia pela frente. Depois de seis meses ou um ano é que a gente vai poder analisar como foi a recuperação em cada país.

O governo brasileiro estima que os novos casos de infecção vão crescer pelos próximos três meses, chegando a um pico em meados de junho.
A discussão se o pico será em meados de junho ou meados de maio ainda não está definida. Com certeza nas próximas duas ou três semanas nós vamos ter uma subida vertiginosa do número de casos.

Há quem entenda que as medidas restritivas adotadas em alguns estados, como fechar escolas e o comércio, começou muito cedo. O sr. acha que essas medidas foram muito antecipadas?
Antecipadas com certeza não foram. Se diminuirmos a velocidade do crescimento e o número de casos logo no começo, é mais fácil reduzir o estrago da epidemia e também adequar o sistema de saúde para fazer os atendimentos. Mas, se houver um crescimento desmesurado, como houve em muitos países, não tem sistema de saúde no mundo que aguente. Como aconteceu na Itália, que é um país de economia forte, cultura bastante elevada. Lá aconteceu uma tragédia de falta de leito, falta de equipamento, de tudo. E não estamos falando dos lugares mais pobres da Itália, estamos falando de Lombardia e Vêneto, que são duas das regiões mais ricas.

O Brasil teve a pequena vantagem de poder observar como a epidemia se manifestou na China e depois na Europa, antes de ela chegar aqui. Quais são os erros e acertos na gestão da crise em outros países que nós podemos tomar como exemplos?
Embora muita gente critique nosso sistema de saúde, acho que a resposta que nós demos aqui foi muito boa. O ministro da Saúde (Luiz Henrique Mandetta), até aqui, teve um desempenho excelente, muito competente, tranquilo, combatendo o pânico, tomando as medidas que poderia tomar. Acho que o Brasil foi bem. Vamos ver se vai aguentar o empuxo que vem agora nas próximas semanas. Por enquanto, tivemos o predomínio em áreas mais ricas do país. São Paulo e Rio são as cidades que mais têm recursos. Imagine quando pegar as áreas mais pobres e mais distantes.

ReproduçãoReprodução“Acho que a resposta que nós demos aqui foi muito boa”
O presidente Jair Bolsonaro chegou a falar em “histeria” e criticou ações de governos estaduais que estariam espalhando pânico na sociedade. Como ser transparente sem causar pânico nas pessoas?
Eu nunca vi transparência ser uma coisa negativa. Acho negativo desprezar evidências científicas, caçoar daquilo que o mundo inteiro já sabe, isso é negativo. O nosso ministério agiu tranquilamente na comunicação à sociedade. Nosso ministro da Saúde é ortopedista, mas teve um comportamento de um excelente epidemiologista. A atitude do presidente foi mais uma daquelas que depois ele teve de dar marcha a ré, em poucos dias. Isso já não é mais uma novidade.

Como classificar o novo coronavírus, em nível de gravidade, na história das epidemias mundiais?
Se você pegar a epidemia da gripe espanhola, em 1918, como ponto central, a mortalidade foi muito maior. Mas era uma época em que não havia antibióticos, aparelhos de respiração, nada disso. Nas epidemias de cólera e da peste, a mortalidade era realmente muito maior porque não tinha nada em termos de assistência de saúde. Agora, em número total de pessoas infectadas, talvez o coronavírus equilibre essa equação de gravidade com essas outras epidemias. Em termos de mortalidade pelo vírus, até o momento, os números são menores que os de outras epidemias do passado. A rapidez de propagação é o que preocupa. Alguns países tomaram cuidado de isolamento, como a China, Singapura, Taiwan, e conseguiram conter a epidemia. E não foi com vacina, foi simplesmente deixando as pessoas em casa. Então, não dá para dizer que as medidas que o governo está tomando aqui são excessivas. Não são. É o único jeito de segurar. É complicado deixar as crianças fora da escola? É complicado. Muitos comem na escola, os pais não têm com quem deixar os filhos por causa do trabalho. Mas não existe alternativa. Ou você faz alguma coisa realmente incisiva, ou não vai conter isso aqui. Enquanto o número de casos não cresce rapidamente, mais chance tem de tratar. Você pode ter até 60% da população infectada, mas, se isso for de forma gradual, é muito mais possível o sistema de saúde dar uma resposta.

Por que o coronavírus se propaga tão rápido? Ele é mais poderoso que os outros vírus?
Na verdade, cada vez que aparece um agente novo, ele encontra uma população sem defesa. Não existem anticorpos contra ele. Em um lugar que tem uma doença há séculos, ela costuma ter gravidade menor, porque existe uma imunidade transmitida através das gerações. Então, a doença é menos grave naqueles locais. Mas quando chega um bicho novo, como o vírus novo de gripe que em 2009 atingiu o México, Peru e Brasil, o estrago foi enorme porque nunca o tínhamos tratado. Com o tempo, a população vai desenvolvendo certa imunidade. Eu acredito que, daqui a 30 ou 50 anos, vamos lembrar da Covid-19 como um vírus muito grave apenas quando se alastrou. Na verdade, existe a  tendência de os vírus ficarem menos malignos porque o importante para eles é se espalhar. Se matarem toda a população, desaparecem juntos. A tendência é eles ficarem menos patogênicos através do tempo, para atingirem mais gente. Enquanto isso, surgem outros. A batalha da humanidade contra esses agentes é cheia de surpresas. Quando ganhamos de um lado, de repente aparece um novo inimigo.

E a melhor forma de derrotá-los é através da vacina?
Quando não temos uma vacina, só controlamos uma epidemia pelo esgotamento do número de pessoas que podem contrair a doença. A maior parte da população passa a ter defesa contra aquele agente porque desenvolve defesa imunológica. Além disso, quando há uma grande parte da população que já é imune, a chance de disseminação se torna muito menor. O número de pessoas não infectadas que vão ser infectadas dali para a frente é muito menor do que aquele que foi infectado inicialmente. Acho que vai demorar um ano ou pouco menos para termos essa vacina. O que vai acontecer é que daqui a três meses, mais ou menos, vamos ter uma redução bastante grande dessa epidemia, porque haverá um número enorme de pessoas imunizadas por causa da própria infecção, já que muitas vezes a reação foi assintomática ou pouco sintomática e as pessoas nem sabe que tiveram.

Divulgação/CedipeDivulgação/Cedipe“Daqui a três meses vamos ter uma redução bastante grande dessa epidemia porque haverá um número enorme de pessoas imunizadas”
No Brasil, a pandemia do H1N1 matou mais de 2 mil pessoas em 2009 e não causou toda essa comoção. É possível comparar as situações?
São comparações inúteis. Dizer que em uma epidemia morreu 10% a mais do que na outra não serve para nada. Qual a vantagem disso do ponto de vista da saúde pública? Nenhuma. Nós sabemos que essa doença mata muita gente, que essa doença mata muitos idosos, muitas pessoas que têm doenças pré-existentes. Não há vantagem em dizer que morreu mais gente na gripe de 2009 ou na gripe espanhola de 1918. Isso só serve para quem quer diminuir a importância do que está acontecendo. É um desserviço.

Quem vê exagero nas ações contra o coronavírus costuma usar argumentos econômicos e sociais para dizer que o combate à doença pode provocar outras crises graves, como desabastecimento e desemprego. Faz sentido?
Basta ver o exemplo da China, onde o número de novos casos hoje é mínimo. Segundo afirmou o embaixador da China no Brasil, em um mês a economia deles estará recuperada. Agora, para quem morreu não importa mais a recuperação da economia. Também dizem que a vacina prejudica o sistema imunológico, sem nenhuma evidência científica. Tudo bobagem. São franco-atiradores. A varíola, antes da vacina, matava 400 mil pessoas por ano na Europa. A varíola matou 3 milhões de pessoas quando chegou nas Américas. Hoje ninguém sabe o que é varíola. São pessoas que usam argumentos completamente desprovidos de base científica, posições absolutamente negacionistas. Se o governo vai lutar na frente de saúde, também tem que lutar na economia tomando medidas para reduzir os danos. É claro que vai ter impacto econômico. Vemos os lugares vazios, mas o que aconteceria se não fossem tomadas essas medidas? Talvez em vez de um restaurante vazio, você teria o dono dele e dois garçons mortos ou a caminho disso. São projeções que não têm nenhuma utilidade. Elas vêm de pessoas que querem sempre minimizar a importância da doença e da prevenção.

O surgimento dessa pandemia pode frear o crescente movimento antivacina no mundo?
Tenho minhas dúvidas se esses movimentos antivacinas são convencíveis. No norte da Itália, por exemplo, onde o movimento cresceu muito, fizeram uma pesquisa e descobriram que eles são 5%, mas a maioria, uns 3%, é daqueles que nós chamamos de hesitante — o sujeito que não sabe bem, tem medo, acha desnecessário porque nunca ouviu falar daquela doença. Esses, você convence. Para os 2% restantes, é religião. Você pode usar todos os argumentos científicos que não adianta.

Em seu livro, o sr. dá apelidos para as grandes doenças da história. Chama o escorbuto, por exemplo, de “peste dos mares”. Se tivesse que escrever um capítulo sobre o coronavírus, que nome daria a ele?
Olhe, ainda não pensei sobre o assunto. Esses nomes têm até um sentido um pouco jocoso, para o público leigo se descontrair com isso. Trabalhamos tanto contra essa nova epidemia que não tive tempo ainda de pensar sobre isso.

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