Adriano Machado/Crusoé

O senhor Corona

O ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, mostra serviço e atrai elogios até de opositores do governo. Sua história, porém, é similar à de outros políticos da velha guarda
20.03.20

Epidemia não é uma novidade na trajetória do médico Luiz Henrique Mandetta. Só em Campo Grande, capital do Mato Grosso do Sul, ele enfrentou três no período em que foi secretário de Saúde, na década passada. A mais grave foi a da dengue, em 2007, que acometeu 45 mil habitantes da cidade, incluindo o então prefeito e seu primo, o senador Nelsinho Trad, que agora está com a Covid-19. Duas pessoas morreram. O desespero levou Mandetta a oferecer prêmio em dinheiro para a população acabar com os criadouros do mosquito Aedes aegypti. A estratégia ajudou a contornar a crise naquele momento, mas a doença nunca abandonou o verão pantaneiro – como, de resto, persiste pelo Brasil afora.

Neste ano, já são quatro as mortes em razão do novo surto de dengue na terra natal do ministro. Até o início de fevereiro, a doença era o grande foco de preocupação do ministério. “Você tem muito mais chance de morrer de dengue no Brasil, hoje, do que de coronavírus”, dizia Mandetta à época. O discurso começou a mudar rapidamente depois que a Covid-19 “desembarcou” no Brasil logo após o Carnaval e foi rapidamente se alastrando pelo país. Demonstrando domínio técnico do assunto, com fala serena e explanações realistas à imprensa, o ministro logo assumiu um protagonismo que lhe rendeu elogios diversos, inclusive de opositores ao governo, mas incomodou a parcela de aliados que vinha minimizando a gravidade do problema.

“Vamos lá, Mandetta: esse vírus aí, coronavírus, é para assustar?”, perguntou o presidente Jair Bolsonaro a seu ministro da Saúde durante uma transmissão ao vivo pelo Facebook na semana passada. Ambos usavam máscaras cirúrgicas — havia a suspeita de que Bolsonaro poderia ter contraído a doença durante uma viagem aos Estados Unidos.

Na live, Mandetta parecia ter finalmente convencido o chefe sobre a magnitude da crise. O presidente sugeriu que as manifestações em defesa do seu governo, que ocorreriam no fim de semana seguinte, fossem adiadas. Na véspera, a Organização Mundial da Saúde havia declarado que o quadro era de pandemia. Apesar das aparências, Bolsonaro ainda não tinha se rendido integralmente às orientações do subordinado – a ponto de sair do palácio e cumprimentar participantes dos atos que ele próprio havia desaconselhado na transmissão.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéEntrevista coletiva no ministério: compromisso diário
Se de um lado Jair Bolsonaro atraía críticas ao dar sinais de que estava disposto a desafiar a gravidade da epidemia, Mandetta despontava de outro, recebendo afagos públicos de desafetos do presidente, como o governador paulista João Doria. A situação irritou o presidente. Na quarta-feira, em uma entrevista coletiva, ele negou ter qualquer problema com o ministro, mas deixou claro seu desconforto com aqueles que elogiam o ministro e o desconsideram como o “técnico” do “time que está ganhando”.

Ortopedista pediátrico, Mandetta é essencialmente político. Um ex-deputado federal do DEM que tem o DNA do Centrão, a ala fisiológica do Congresso Nacional duramente atacada pela rede bolsonarista. Ele e o presidente se aproximaram na Câmara dos Deputados quando foram vizinhos de gabinete e partilhavam críticas a bandeiras da esquerda, como a legalização das drogas, e a programas do PT, como o Mais Médicos.

A chegada de Mandetta ao ministério foi possível graças ao apoio de grandes amigos de partido que são aliados de Bolsonaro, como Onyx Lorenzoni, até recentemente ministro chefe da Casa Civil, e o governador de Goiás, Ronaldo Caiado. Com a perda de influência da dupla no governo e a ascensão do coronavírus, Mandetta virou o homem forte do grupo dentro da máquina. Os elogios a seus acertos têm lastro na mesma medida em que há, nas ações oficiais de combate ao coronavírus, outros envolvidos merecedores de crédito.

Desde a confirmação do primeiro caso de coronavírus no país, Mandetta tem trabalhado mais de 15 horas por dia, não raro despachando no ministério até a madrugada. Aos 55 anos de idade, abriu mão dos finais de semana com a família — tem três filhos e um neto — em Campo Grande, para se debruçar sobre estudos e gráficos que reportam a evolução da doença em uma série de outros países. Fez uma exceção para ir pessoalmente retirar os pais, com mais de 80 anos de idade, da capital e levá-los para um sítio mais afastado no Mato Grosso do Sul. A mulher, também médica, fica com ele em Brasília. Ela trabalha no Hospital Regional da Asa Norte, uma das unidades de referência no tratamento do vírus na cidade. Os cerca de 50 compromissos semanais que o ministro costumava ter com parlamentares e prefeitos foram substituídos por audiências com o corpo técnico da pasta, médicos de diferentes regiões, representantes de organismos internacionais e com o presidente Bolsonaro, com quem tem falado pelo menos duas vezes por dia.

Reprodução/FacebookReprodução/FacebookO ministro durante live com o presidente
À frente de um dos ministérios mais importantes da Esplanada, Mandetta soube se cercar de uma equipe preparada que também vem sendo elogiada largamente por médicos e especialistas de diferentes instituições. Em seu histórico, o ministro coleciona algumas notas que destoam um pouco de sua aplaudida atuação no combate à epidemia de coronavírus. É réu, por exemplo, em uma ação de improbidade na qual é acusado de fraudar um contrato de 8,1 milhões de reais para favorecer uma empresa de informática quando era secretário em Campo Grande, em 2010. Segundo o Ministério Público Federal, ele viajou a Portugal com despesas pagas pelo empresário que venceu a licitação e depois fez doações via caixa 2 para sua campanha. Um segundo processo, desmembrado desse, foi enviado recentemente para a Justiça Eleitoral do Mato Grosso do Sul. Ambos estão em segredo de Justiça.

A relação de financiadores de campanha de Mandetta revela elos com outros personagens enrolados com a Justiça. Em 2014, quando se reelegeu deputado, o democrata recebeu um cheque de 100 mil reais do empresário João Roberto Baird, apelidado de “Bill Gates Pantaneiro” e denunciado por esconder 6,5 milhões de reais no Paraguai. Outros 154 mil reais foram transferidos pelo frigorífico Buriti, apontado pelo empresário Joesley Batista como um dos emissores de notas frias para o esquema com o qual a JBS irrigava contas de políticos.

O próprio ministro bancou praticamente um quarto de sua campanha na ocasião em uma conta que, aparentemente, não fecha. Foram 489,3 mil reais, sendo 189,3 mil em espécie. O valor representa 77% de todo o patrimônio declarado por ele à Justiça Eleitoral naquele ano. Um dos mais fiéis colaboradores de campanha de Mandetta é o empresário Aurélio Nogueira Costa, que repassou 144 mil reais, a maior parte em dinheiro vivo, nas eleições de 2010 e 2014, por meio da empresa Cirumed Comércio Ltda, que já foi alvo de uma operação da Polícia Federal por suspeita de fraudar licitações para fornecimento de medicamentos em prefeituras do Mato Grosso do Sul, incluindo Campo Grande. Na última quarta, como antecipou a newsletter Brasil Real Oficial, uma outra empresa de Costa, a Prosanis, foi contemplada com um contrato de 700 mil reais sem licitação assinado pelo ministério de Mandetta para fornecer avental hospitalar durante as ações de combate ao coronavírus. A Crusoé, o ministério afirmou que recebeu duas propostas e que o valor cobrado pela empresa era 22% menor do que o preço médio do produto. “O processo ocorreu conforme a legislação, de forma transparente e proba”, afirmou a pasta.

Aliado do ex-governador André Puccinelli, do MDB, preso duas vezes nos últimos anos acusado de corrupção, e do atual governador do Mato Grosso do Sul, Reinaldo Azambuja, do PSDB, Mandetta desistiu de tentar a reeleição para a Câmara dos Deputados em 2018 com receio de naufragar nas urnas. No páreo também estavam o deputado Fabio Trad, do PSD, primo do ministro, e a atual ministra Tereza Cristina, do DEM, ambos eleitos. Agora, Mandetta já desponta como um dos nomes mais fortes para sucessão do governo estadual, em 2022. Pelo menos até aqui, ele pode estar certo de que a crise do coronavírus o deixou maior do que era.

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