Adriano Machado/Crusoé

O improvável Dominguetti

A CPI da Covid vive seu momento mais surreal ao ouvir um PM bolsonarista que diz ter recebido um pedido de propina de 400 milhões de dólares para vender ao governo vacinas que não tinha
02.07.21

Nesta quinta-feira, 1º, a CPI da Covid dedicou-se à tarefa de ouvir uma testemunha improvável, um cabo da Polícia Militar de Minas Gerais que, no início deste ano, aterrissou em Brasília oferecendo ao governo federal milhões de doses de vacinas que jamais conseguiria entregar. Luiz Paulo Dominguetti foi convocado após afirmar ao jornal Folha de S. Paulo que, ao se reunir com um diretor do Ministério da Saúde, ouviu um impagável pedido de propina de 1 dólar por cada dose a ser fornecida. De início, a denúncia caiu como uma bomba na comissão. Senadores se apressaram para marcar o depoimento do policial, tido como uma testemunha capaz de implicar o governo em um grande esquema de corrupção.

Nos dois dias seguintes à publicação da denúncia, os parlamentares começaram a ser abastecidos com informações até então desconhecidas sobre Dominguetti. Não, ele não era um alto executivo de uma grande fornecedora de vacinas, mas sim um modesto policial militar do interior de Minas, e a própria empresa da qual ele se dizia representante é uma firma com sede nos Estados Unidos e enrolada justamente por oferecer vacinas que nunca teve nem nunca terá. E mais: em suas redes sociais, Dominguetti se mostrava um ferrenho apoiador do governo. O histórico bolsonarista, somado à constatação de que ele estava oferecendo vacinas que não poderia entregar, acendeu o sinal de alerta nos senadores.

Ainda na parte inicial de seu depoimento, surgiu mais um sinal estranho. Sem ser provocado, Dominguetti tentou desqualificar o deputado federal Luis Miranda, que denunciou a existência de um possível esquema de corrupção em torno da compra da vacina indiana Covaxin e pôs o escândalo dentro do gabinete presidencial ao afirmar que, ainda no início deste ano, levou as suspeitas ao conhecimento de Jair Bolsonaro, que não mandou investigar o caso – o caso ainda escalaria mais alguns degraus com a revelação, feita nesta semana por Crusoé, de que o próprio Miranda, após levar o assunto ao presidente, recebeu uma oferta de propina para não atrapalhar o negócio.

O voluntarismo de Dominguetti para torpedear o deputado que vem incomodando o Planalto e o presidente da República chamou atenção. Ele usou um áudio editado de outubro do ano passado para sustentar, sob os holofotes da CPI, que Miranda também estaria vendendo vacinas. O áudio, na verdade, era sobre a compra de luvas para o pessoal da saúde. Senadores de oposição passaram a considerar a possibilidade de se tratar de uma “testemunha plantada” para desviar o foco do escândalo da Covaxin para longe de Jair Bolsonaro. O telefone celular de Dominguetti foi apreendido. Vários senadores pediram a prisão do policial, mas o presidente da comissão, Omar Aziz, não topou.

O perfil de Dominguetti reforçava as suspeitas. Por mais que tenha dito aos senadores não se lembrar de ter feito manifestações políticas em suas redes sociais, suas postagens no Twitter e no Facebook mostravam o contrário: ele sempre defendeu Bolsonaro, a quem chegou a se referir como “meu presidente”. O histórico do cabo na PM de Minas, onde ele chegou a trabalhar no gabinete militar do governador Romeu Zema, é discreto. A passagem pelo palácio do governo foi rápida. De lá, Dominguetti foi transferido para o batalhão de Alfenas, onde segue até hoje. Ao tentar explicar sua curiosa incursão em Brasília para oferecer vacinas, o policial disse que complementa renda intermediando a venda de produtos na área de saúde.

GoogleGoogleA fachada da Davati, em Austin: empresa admite que não tinha vacinas
Nada se encaixava com a figura de um homem de negócios capaz de fornecer ao governo federal 400 milhões de doses da vacina AstraZeneca – era essa a oferta que ele levou a Roberto Dias, o diretor de Logística do Ministério da Saúde indicado pelo Centrão e que foi prontamente demitido logo após o surgimento da denúncia sobre o pedido de propina.

Com o avanço da apuração, não era só Dominguetti que não enquadrava no figurino. A Davati Medical Suply LLC, a empresa que o PM diz representar, sediada na região industrial de Austin, no estado americano do Texas, também passou a ser enxergada com desconfiança à medida que se descobriam mais informações sobre o seu histórico. No Canadá, a Davati é acusada de aplicar um golpe ao tentar vender doses de vacina contra Covid-19 sem autorização a grupos indígenas. Segundo a imprensa canadense, a polícia investiga o caso. Antes da pandemia, a empresa dizia atuar no ramo da construção civil.

Mesmo com o perfil obscuro e um intermediário nada qualificado, a proposta da Davati de vender vacinas para o Brasil foi, estranhamente, levada a sério pelo governo, a ponto de Dominguetti ter conseguido sentar-se à mesa com o então chefe do setor do Ministério da Saúde responsável pela compra de medicamentos.

No Brasil, depois que estourou a denúncia sobre o pedido de propina em troca da oferta das vacinas inexistentes, a empresa Davati tem escorregado até mesmo ao falar dos representantes comerciais com quem firmou parcerias. Além de Dominguetti, havia mais gente autorizada a negociar em nome da companhia. Crusoé apurou que, no início do ano, a Davati estava no mercado em busca de empresários que tivessem alguma entrada no Ministério da Saúde e pudessem facilitar conversas com a cúpula. Ali já havia sinais eloquentes de que a empresa estava vendendo terreno na lua. Um dos empresários abordados resolveu procurar a AstraZeneca para saber se a Davati de fato tinha autorização para oferecer as vacinas produzidas pelo laboratório. A resposta à consulta, feita por e-mail, foi peremptória. “As ofertas que a Davati está fazendo devem ser consideradas suspeitas”, respondeu Katie Silk, diretora global de segurança da AstraZeneca ao e-mail, intitulado “Possível crime envolvendo a vacina de Covid-19 da AstraZeneca no Brasil”.

Além de Dominguetti e do empresário Cristiano Alberto Carvalho, o “amigo” que convidou o policial mineiro para a empreitada e lhe forneceu o áudio que procurava atingir Luis Miranda, outros intermediários se apresentaram para negociar em nome da empresa junto ao Ministério da Saúde – e, ao que tudo indica, eles nem sequer se conheciam, e corriam em raias distintas. Em março, mês seguinte à proposta levada a Brasília por Dominguetti, o advogado paulista Julio Caron entrou em contato com a pasta oferecendo vacinas da AstraZeneca a serem fornecidas pela Davati. A Crusoé, ele explicou assim sua aproximação com a empresa: “Primeiro a gente assinou um acordo de confidencialidade, depois a Davati me pediu: me prova que você consegue vender minhas vacinas, que consegue colocar isso pro governo. Foi em função disso que eu entrei em contato com o ministério e fiz a oferta“.

Edilson Rodrigues/Agência SenadoEdilson Rodrigues/Agência SenadoAziz: o presidente da CPI não quis ordenar a prisão do PM
Caron afirma que o negócio desandou quando o Ministério da Saúde pediu mais garantias e documentos sobre a entrega das doses. “Eu entrei em contato com a Davati e falei: ‘Olha, eu preciso dessa informação da AstraZeneca, preciso saber dessa relação que vocês têm com eles, se você é um distribuidor oficial, exclusivo, se você revende produto dele. Como não tive resposta, não levei a negociação adiante”, diz o advogado, que atuou em parceria com um empresário de futebol, Rodolfo Forte. Os dois dizem que nunca tinham ouvido falar de Dominguetti.

As circunstâncias em que o policial entrou no negócio seguem um mistério. O diretor-presidente da Davati, Herman Cárdenas, afirmou ao jornal O Estado de S. Paulo que “atendeu um pedido” para incluir Dominguetti nas negociações com o governo brasileiro. “Nos pediram e presumimos que ele fosse representante deles”, disse, dando a entender que a exigência seria do governo brasileiro. Indagada por Crusoé, a empresa não respondeu quem são os autores do pedido. Depois, em nota, a Davati admitiu que não é representante da AstraZeneca e que não tinha vacinas pra entregar.  A AstraZeneca também distribuiu nota em que disse não “ofertar a vacina por meio do mercado privado”.

Trecho do e-mail enviado por diretora da AstraZeneca a empresário alertando para a ação suspeita da Davati
Dominguetti afirma que ouviu o pedido de propina em um jantar em um restaurante localizado dentro de um shopping de Brasília no dia 25 de fevereiro. Ele disse ter chegado ao local sozinho para o encontro. Além do então diretor de logística do ministério, Roberto Dias, estavam à mesa o coronel Marcelo Blanco, ex-assessor da pasta que teria providenciado a reunião informal, e uma pessoa que, segundo ele, teria se identificado como empresário –  após ver uma fotografia, ele disse acreditar que o terceiro participante do encontro era um outro militar, também ex-integrante do ministério, que negou que estivesse presente ao jantar.

O PM relata que foi Roberto Dias quem pediu a suposta propina de 1 dólar por dose, o que, a se considerar o número de doses teoricamente em negociação, representaria a fantástica cifra de 400 milhões de dólares, cerca de 2 bilhões de reais – uma vastidão até para os padrões elásticos do petrolão, por exemplo.

Nas próximas semanas, a CPI quer fazer uma acareação entre Luiz Dominguetti e Cristiano Carvalho, o parceiro de negócios do policial que, diz ele, foi quem o convenceu a denunciar o pedido de propina. Roberto Dias, o denunciado, também deve ser ouvido pelos senadores. Em paralelo, a comissão espera obter no celular apreendido com o cabo Dominguetti outras informações capazes de ajudar a elucidar a trama.

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