Eles conseguiram
Que a Lava Jato não seria mais como antes, quando se consagrou como a maior operação de combate à corrupção da história recente do país, já se sabia desde que o ex-ministro da Justiça Sergio Moro foi empurrado para fora do governo – como atestaram as trocas de mensagens entre ele e o presidente Jair Bolsonaro que vieram a público nesta semana. Com Augusto Aras no comando da Procuradoria-Geral da República fazendo de tudo para boicotar a operação, em sintonia fina com Jair Bolsonaro, um presidente cada vez mais obstinado pela reeleição, abraçado com o que de há de pior na política e preocupado em evitar que as investigações alcancem a primeira família, dificilmente as investigações prosperariam da mesma maneira e sob os mesmos valores e princípios.
Ao longo desta semana, no entanto, a Lava Jato sofreu mais um golpe. Na terça-feira, o coordenador da força-tarefa de Curitiba, Deltan Dallagnol, anunciou seu desligamento da operação. “Sonhamos junto o sonho de um país menos corrupto. Serei eternamente grato a vocês por isso”, afirmou em sua despedida. Dallagnol era a alma da Lava Jato. Foi ele o responsável por montar o grupo de procuradores que reuniu a maior coleção de delações e provas documentais de corrupção, e gerou o maior número de condenações da história do país. Graças a esse trabalho, centenas de empresários, políticos, operadores financeiros e criminosos do colarinho branco foram para a cadeia.
A equipe montada por Dallagnol em 2014, quando ele foi escolhido pelo Ministério Público Federal do Paraná para ser o coordenador da Lava Jato, uniu profissionais tarimbados para lidar com casos escabrosos de corrupção e jovens técnicos dedicados, capazes de tocar adiante apurações envolvendo empresários de altíssimo calibre, considerados intocáveis até então, e políticos poderosos, protegidos pela blindagem judicial de sempre. Os desentendimentos no grupo eram raros. Ao primeiro sinal de divergência, Dallagnol agia para garantir a unidade. “Ele era um líder natural”, diz um de seus colegas.
Apesar de alguns percalços naturais como em toda cruzada dessa magnitude, o êxito da força-tarefa, constituída vinte dias depois de o doleiro Alberto Youssef ser preso pela Polícia Federal, foi consistente e duradouro. Os últimos meses, no entanto, haviam sido especialmente pesados e desgastantes para Dallagnol. Não bastassem os recentes problemas de saúde da filha de um ano e dez meses, razão pela qual ele teria de se dedicar mais tempo à família, o procurador estava debaixo de uma pressão inclemente.
Dallagnol assistia entre estupefato e incrédulo ao voluntarismo de um procurador-geral da República obcecado em querer: 1. acessar documentos sigilosos da operação; 2. articular para que ele fosse alvo de sanções disciplinares no Conselho Nacional do Ministério Público, o CNMP; 3. manobrar para que prepostos seus conseguissem levar a julgamento o célebre episódio do PowerPoint, que alçava Lula a líder da organização criminosa que tomou de assalto a Petrobras, apesar de a apresentação de Dallagnol já ter sido considerada legal por quatro instâncias judiciais – além de o caso já restar prescrito.
Durante a semana, o procurador se deu conta de que a batalha interna contra um PGR decidido a atuar em várias frentes para asfixiar as investigações e se valer de informações sigilosas para uso político parecia perdida. Na noite de quinta-feira, 27, ele tomou a decisão de deixar a Lava Jato. Em nenhum momento, porém, admitiu que estava saindo em razão dos ataques ou de qualquer pressão. Publicamente e em conversas reservadas, sustentou que tomou a decisão para se dedicar ao tratamento da filha. Mais cedo, Augusto Aras havia estado com o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, um dos maiores críticos da operação na corte.
No dia seguinte ao anúncio, Dallagnol e Alessandro Oliveira, que seria anunciado como seu sucessor, conversaram por telefone. Oliveira, que vinha atuando na assessoria de Lindôra Araújo, se colocou à disposição para uma transição sem sobressaltos. “A Lava Jato vai seguir firme, é composta por 14 procuradores da República que tomam decisão de forma colegiada. O Alessandro é um colega competente, dedicado, tem conhecimento e experiência, é um colaborador e apoiador da Lava Jato”, disse.
Nesta quinta, Dallagnol falou a Crusoé sobre os rumos da operação:
O que fazer para evitar que o que foi feito seja perdido?
Não existe atalho. Procuradores, juízes e parlamentares que são engajados na causa anticorrupção não conseguirão defender os avanços ou barrar retrocessos sozinhos. É preciso apoio e engajamento cívico. As pessoas precisam se envolver nessa causa porque é delas. São elas que sofrem quando o dinheiro é desviado. São elas que sofrerão com filas na saúde, com má qualidade da educação, com falta de segurança pública, com mortes nas estradas, com subdesenvolvimento. É importante que cobrem dos governantes seus compromissos, liguem ou mandem mensagens para os deputados e senadores, participem do debate público e votem bem. O avanço civilizatório na direção de mais integridade na vida pública depende da participação política a título de cidadania.
Pela primeira vez, a Lava Jato encontra oposição até dentro do próprio MPF. Como superar essa situação?
Acreditamos que o caminho sempre é o do diálogo com o procurador-geral, do debate transparente dentro e fora da instituição e do envolvimento da sociedade nisso, assim como em outras matérias de interesse público.
O sr. se arrepende de algo?
Vivemos vinte anos em seis. Foi uma jornada muito intensa de aprendizado e aperfeiçoamento. Com o privilégio da visão retrospectiva, faríamos melhor ou diferente aquilo que deu errado ou gerou polêmica. No caso do acordo com a Petrobras, que permitiu que mais de 2 bilhões de reais ficassem no Brasil, a ideia (de fazer uma fundação) era boa, mas teríamos incluído outros órgãos na negociação, como AGU, CGU e a própria PGR, o que certamente teria permitido seu aperfeiçoamento e a protegido contra críticas. Mas sempre tivemos a intenção de fazer o nosso melhor, de trabalhar com excelência, dentro da lei, de modo dedicado e inovador.
Lhano no trato com os colegas, Dallagnol não quer se indispor com a nova direção da fora-tarefa nem quer ser o responsável por anunciar a débâcle da operação. Embora não admita publicamente, sabe, no entanto, que a Lava Jato está condenada a definhar, diante das ações premeditadas de Aras, da complacência do STF e do silêncio sepulcral de Bolsonaro e do bolsonarismo, que surfou na onda da operação para chegar ao poder, mas preferiu abandonar a bandeira quando percebeu que o Ministério Público poderia alcançar os seus.
Uma das evidências de que o futuro não será mais como era antigamente foi que, na noite de quarta-feira, sete integrantes da força-tarefa da Lava Jato em São Paulo pediram demissão coletiva. Apontaram “incompatibilidades insolúveis” com a procuradora Viviane de Oliveira Martinez, responsável pelas investigações no estado. Nos bastidores, os procuradores reclamam que Viviane não teria capacidade técnica para coordenar a Lava Jato, o que provocaria confusão e atraso nas investigações. Os procuradores da força-tarefa paulista também a acusaram de pedir o adiamento de uma das operações que investigam o senador José Serra, do PSDB, e de trabalhar intramuros para barrar novas negociações para acordos de delação premiada.
De fato, não se pode perder de vista que foi o PT, desde antes da prisão de Lula, quem iniciou a campanha para demolir a Lava Jato. Mobilizou sua tropa contra o então juiz Sergio Moro, tentou nomear ministros em tribunais superiores compromissados em frear a operação, valeu-se de blogueiros aliados com o intuito de desacreditar o trabalho e até hackers apareceram na trama para desqualificar os investigadores que atuavam na linha de frente da operação – Deltan Dallagnol incluído.
Enquanto bolsonaristas refugiaram-se oportunamente no silêncio, deputados petistas comemoraram, nas redes, a despedida de Dallagnol. O paulista Paulo Teixeira disse que “o procurador Dallagnol prestou grande desserviço ao país”. A atmosfera de festa nos grupos de WhatsApp e em blogs ligados ao PT teve um sabor ainda mais especial: além do desligamento do procurador, a semana ainda os brindou com a absolvição de Lula no TRF-1 no caso das palestras pagas pela Odebrecht. Uniram-se ainda na comemoração figurões do PSDB e advogados criminalistas com clientes enrolados na Lava Jato. Para eles, a troca de comando deve diminuir o ritmo do andamento dos casos. Senão apenas pela ausência de Dallagnol, mas pelo tempo que deve levar o novo coordenador da Lava Jato para se inteirar do trabalho.
A próxima batalha a ser travada em nome da sobrevivência do que restou da operação ocorrerá na semana que vem. No dia 10, Aras decidirá se a força-tarefa da Lava Jato será prorrogada e por quanto tempo. Há material para ao menos mais 15 fases da operação para os próximos meses, além de 300 investigações em andamento que poderão resultar em novas denúncias. E ao menos cinco novos acordos de delação estão prontos para homologação ou em fase de negociação. Aras estaria inclinado a prorrogar a força-tarefa em Curitiba por um prazo mais curto, algo em torno de 60 dias, e com número menor de integrantes, o que representaria mais uma derrota para a operação.
Na terça-feira, a subprocuradora-geral da República Maria Caetana Cintra Santos, integrante do Conselho Superior do Ministério Público, assinou um despacho prorrogando a Lava Jato por um ano. Caetana tomou a decisão na condição de relatora de um pedido de prorrogação feito pelos próprios integrantes da operação. A questão é que, além de provisória, a decisão não obriga Aras a segui-la. E é aí que mora o problema: sob a caneta do PGR, nomeado por Jair Bolsonaro e aplaudido de pé pelo PT e pelo PSDB, a Lava Jato nunca esteve tão a perigo. Nunca antes o Brasil viu uma coalizão política tão forte e unida em torno de um mesmo objetivo.
Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.