O mensalão de Bolsonaro
Embora já tivesse uma longa carreira como deputado, Jair Bolsonaro elegeu-se presidente prometendo combater os velhos hábitos da política. O discurso não durou muito. Tão logo assumiu o Palácio do Planalto, ele começou a se render ao que há de pior em Brasília. Aos primeiros sinais de que era preciso compor com uma parcela do Congresso Nacional, Bolsonaro piscou e logo fechou uma aliança com o fisiológico Centrão. Desde então, começou a pagar o preço para ter uma base parlamentar capaz de lhe dar sustentação mínima na Câmara e no Senado. No ano passado, quando estava em vias de sacramentar a aliança, veio a abertura dos cofres. E não apenas pelas vias tradicionais. Para dissimular a distribuição de dinheiro público para os aliados mais fiéis, o governo criou um duto diferente: uma espécie de orçamento paralelo em que bilhões de reais são destinados a alguns ministérios e gastos, por debaixo dos panos, de acordo com o interesse de parlamentares escolhidos a dedo pelo Planalto.
A lógica é a mesma dos escândalos que emergiram nos governos anteriores: usar dinheiro público para garantir o apoio de congressistas. Era assim no mensalão, o esquema descoberto no primeiro mandato de Lula, e era assim no petrolão, em que contratos gigantescos da Petrobras se convertiam em propinas para políticos aliados do governo. A diferença é que, agora, sob Bolsonaro, a coisa se dá com recursos do orçamento, usando de subterfúgios para maquiar a distribuição. A partir do instante em que o Planalto se viu na necessidade de construir uma base no Congresso – e foi então apresentado à fatura que seria preciso pagar –, coube à Secretaria de Governo, então comandada pelo general Luiz Eduardo Ramos, hoje chefe da Casa Civil, a tarefa de organizar a partilha. A ideia foi gestada a partir de uma parceria do palácio com o Congresso. Para o modelo dar certo, foi preciso criar a figura das “emendas de relator”, em que um pedaço dos gastos anuais do governo tem necessariamente que ser aplicado de acordo com a indicação do parlamentar escolhido para ser o relator do orçamento federal, normalmente um aliado do governo. Só no passado, esse naco foi de 20 bilhões de reais.
O quintal dos Bezerra
Dos 3 bilhões do orçamento paralelo que foram para o Ministério do Desenvolvimento Regional, 459 milhões tiveram a Codevasf como destino. E, desse valor, nada menos que 125 milhões seguiram para o caixa da companhia por indicação do senador Fernando Bezerra Coelho, do MDB, aliado de primeiríssima hora do presidente Jair Bolsonaro, a ponto de ter sido escolhido por ele como líder do governo no Senado apesar de responder a várias investigações federais por suspeita de desvio de verba. Fernando Bezerra, que também já foi ministro de Dilma Rousseff, tem a Codevasf como um de seus principais feudos. A superintendência da companhia em Petrolina, cidade pernambucana dominada politicamente há décadas pela família do senador, tem no comando um ex-assessor dele, Aurivalter Cordeiro. Foi justamente para lá que Fernando Bezerra destinou uma parcela da verba com a qual foi “contemplado” pelo Palácio do Planalto.Outra pessoa próxima da família que tem conseguido fechar contratos com a Codevasf é Marco Antonio Coelho Carvalho, procurador da prefeitura de Juazeiro, cidade vizinha a Petrolina que também é historicamente dominada pelo clã. A Tratormaster Tratores, Máquinas, Peças e Serviços, da qual Marco Antonio é sócio, recebeu 1,5 milhão vendendo retroescavadeiras para a Codevasf, também sem licitação. Há, ainda, outra empresa ligada à família do líder do governo que recebeu uma pequena fortuna a partir dos recursos do orçamento paralelo – nesse caso, não pela venda de máquinas, mas por serviços de pavimentação. A Liga Engenharia, cujo dono é cunhado de um sobrinho do senador, recebeu pelo menos 28 milhões nos últimos seis meses da Codevasf e do DNOCS, o Departamento Nacional de Obras contra a Seca, que igualmente levou um pedaço importante da bolada.
O ‘amigo’ do presidente
O multimilionário Vittorio Medioli, prefeito da cidade mineira de Betim pelo PSD, fez questão de ir a Brasília cumprimentar o “amigo” Jair Bolsonaro logo depois de sua eleição, em 2018. “Encontros como esse são importantes para contribuir para o crescimento do Brasil e de Betim”, escreveu Medioli nas redes sociais, debaixo de uma foto descontraída ao lado de Bolsonaro. Desde a liberação dos recursos do orçamento paralelo, a Deva Veículos, uma das várias empresas de propriedade do prefeito, tem fechado seguidos contratos com a Codevasf que já somam 64 milhões de reais. O mecanismo funciona de maneira semelhante aos casos de Fernando Bezerra: parlamentares aliados do governo mandam o dinheiro para a companhia e definem o bem ou serviço que deve ser pago com ele. Somente o senador Carlos Viana, do PSD, mesmo partido de Vittorio Medioli, destinou 32 milhões de reais ao braço mineiro da Codevasf a partir do orçamento paralelo. Uma parte desse valor já se transformou em compras na empresa do prefeito. Em 12 de março deste ano, a Codevasf adquiriu 32 caminhões coletores de lixo junto à Deva. Cada unidade saiu por 294,5 mil reais (ao todo, foram gastos 9,4 milhões). Há indícios de que o valor pago está acima do preço normal — em dezembro do ano passado, a mesma Deva vendeu um caminhão semelhante, e com potência até maior, por 30 mil reais a menos.O operador de Ciro e as ‘consultorias’
Davidson Tolentino é um conhecido operador do Progressistas, novo nome do antigo PP, o partido que é esteio do Centrão. Sempre que a legenda consegue do presidente de turno aval para aboletar seus homens em ministérios ou estatais, Tolentino está de prontidão, não importa a área. Já ocupou posições importantes em órgãos tão díspares quanto a CBTU, a estatal federal de trens urbanos, e o Ministério da Saúde, quando a pasta era comandada por Ricardo Barros, no governo de Michel Temer. Quase sempre, é colocado bem próximo dos departamentos que envolvem contratos e verbas. Tolentino é homem de Ciro Nogueira, o presidente do partido, e seu nome já esteve muitas vezes atrelado a suspeitas de cobrança de propina. No Ministério da Saúde, como publicou Crusoé ainda em 2018, ele foi apontado como o responsável por procurar, em nome do PP, empresários que tinham faturas a receber na pasta. Segundo Tolentino, se quisessem receber, os empresários teriam de fazer um “alinhamento financeiro” com o partido. Uma clara figura de linguagem para não ter que pronunciar a palavra “propina”.A Agrar tem como sócio Pedro Luiz Aleixo Lustosa de Andrade, denunciado pelo Ministério Público Federal por participar do esquema de desvio de dinheiro público no governo de Sérgio Cabral, no Rio de Janeiro. Segundo os procuradores, Pedro Lustosa integrava uma organização criminosa que fraudou licitações e formou cartel na reforma do Maracanã e no PAC das favelas – à época, ele era executivo da Metrópolis Projetos Urbanos. A Crusoé, o consultor negou haver qualquer irregularidade no contrato fechado com a Codevasf e disse ter “zero relação política” com Ciro Nogueira e com Davidson Tolentino. “Quem está cuidando desse contrato é meu sócio. Eu não sou a pessoa mais adequada para responder”, afirmou. O contrato é destinado à prestação de consultoria ambiental para empreendimentos da Codevasf.
Cadê o dinheiro?
Gameleira de Goiás é uma típica cidadezinha de interior. Com 3,8 mil habitantes, está localizada a pouco mais de 200 quilômetros de Brasília, mas parece perdida no tempo e no espaço. A pequena sede do município se esparrama ao longo de uma única avenida, ao redor da qual se concentram pequenas casas térreas e o modesto comércio local. A cidade tem apenas duas escolas. Em 8 de dezembro do ano passado, Gameleira foi indicada como destino de nada menos que 20 milhões de reais. Dinheiro do orçamento paralelo do Ministério do Desenvolvimento Regional. Curiosamente, quem fez a indicação foi Márcio Bittar, um senador do MDB do Acre que, à primeira vista, não tem relação nenhuma com o município. Bittar é da cozinha do Planalto e goza de ótima relação com o presidente da República. No Congresso, ele tem ocupado postos-chave. Foi relator da chamada PEC emergencial e, mais recentemente, da proposta orçamentária para este ano – o que significa que, em 2021, será ele o responsável por coordenar o destino das gordas “emendas de relator”, estimadas em 18 bilhões de reais.Os moradores dizem nem lembrar da última vez que foi feita uma obra em Gameleira. O prefeito, Wilson Tavares, do Democratas, disse não conhecer o senador Márcio Bittar, mas demonstrou estar ciente da transferência de recursos. “A gente não fica sabendo. Como é uma emenda extraorçamentária, eu não sei quem colocou pra mim”, disse. À diferença do que mostram os sistemas oficiais, o prefeito afirma que não recebeu até hoje nenhum repasse. Indagado se 20 milhões de reais não seria um valor alto demais para gastar com asfaltamento e recapeamento de ruas da minúscula cidade, o prefeito se apressou em dizer que tem mais planos para a cifra. “Eu preciso fazer calçada, reformar praças, preciso fazer um estádio, ponte”, afirmou. Crusoé tentou falar com o senador Márcio Bittar. Ele até respondeu a uma primeira mensagem, mas depois de perguntar e ser informado sobre qual era o assunto , sumiu.
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