RuyGoiaba

Mais Gugu e menos Gonzaguinha

29.11.19

“Tudo na vida tem seu lado bom, menos um LP do Gonzaguinha”, dizia a piada daquele tempo em que pessoas não-hipsters compravam discos de vinil. Pois não é que a Globo resolveu fazer uma novela cheia de consciência social — daquelas para esfregar no chapisco a cara do telespectador burguês e acomodado que certamente votou 17 —, e exumou uma das músicas mais deprimentes do filho do grande Gonzagão para a abertura? “É, a gente não tem cara de panaca, a gente não tem jeito de babaca” (bem, há controvérsias).

É só não é a pior música do mundo porque o próprio Gonzaguinha, que Deus o tenha, ocupa o topo do meu ranking pessoal com “viveeer e não ter a vergonha de ser feliiiiiz” — essa dá a mim, que jamais andei armado, ganas de empunhar uma bazuca e atirar no rádio, no som ambiente do consultório dentário ou onde quer que esse horror esteja tocando. E de dar um banho de soda cáustica naqueles bêbados emocionados que cantam isso de braços abertos.

Enquanto Gonzaguinha é ressuscitado, Gugu Liberato continua morto, pelo menos até o momento em que escrevo — o corpo do apresentador, vítima de um estúpido acidente doméstico nos EUA, está sendo velado nesta quinta (28) na Assembleia Legislativa paulista. Em certo sentido, Gugu morreu ainda antes disso: hoje, parece quase inconcebível que um programa vespertino leve ao ar certas coisas que eram o pão de cada semana do Domingo Legal na década de 90 (prova da banheira, garota da camiseta molhada, dança na boquinha da garrafa, strip-tease de homens e mulheres com medição dos batimentos cardíacos de quem assistia e outras atrações de elevado nível cultural).

E o que tem o Gonzaguinha a ver com o Gugu? Bom, vejo aí — a coluna é minha e hoje estou a fim de fazer sociologia freestyle, dá licença? — duas ideias antagônicas de entretenimento em massa: uma que é basicamente give the people what they want, inclusive (talvez principalmente) a baixaria, e outra que defende a “responsabilidade social” do meio na formação de cidadãos conscientes — mesmo em obras de ficção, como uma novela. Ensinar o valor da solidariedade, da empatia e de outros sentimentos fofinhos.

Por mais que se argumente, com razão, que o telespectador não quer só baixaria, a segunda postura é muito mais paternalista que a primeira. Não me entendam mal: fui criado assistindo à TV Cultura e até hoje recorro à música que Marcos Valle compôs para a versão brasileira do Vila Sésamo quando preciso lembrar se o L vem mesmo antes do P na ordem alfabética. Mas não me agrada perceber um “vamos lá dar lições de civilização a esses botocudos” no fundo das boas intenções televisivas. É insultuoso, até por fingir — muito mal — que o objetivo final do negócio não é vender amaciante de roupa.

Sim, há décadas a educação brasileira é o desastre que conhecemos. Mas a TV deveria ter a pretensão de compensar suas falhas? Acho isso no mínimo duvidoso — ainda mais levando em conta o desinteresse pelo meio entre os jovens que, hoje, dão audiência a youtubers e montam sua “grade de programas” na internet do jeito que bem entendem. Seja como for, lições de moral sempre me deram alergia. Mil vezes o pintinho amarelinho e a Luiza Ambiel de bunda para cima tentando pegar o sabonete no fundo da banheira.

***

A GOIABICE DA SEMANA

A moda na internet é “cancelar” qualquer ser humano célebre que tenha tido algum comportamento ligeiramente abaixo da santidade — como já escrevi por aqui, Deus perdoa, mas as redes sociais não. Nas artes plásticas, uma das mais recentes vítimas de cancelamento é Paul Gauguin (1848-1903), o pintor francês que viveu no Taiti: sua mostra na National Gallery está sendo questionada porque ele “fazia sexo com adolescentes” e “via os polinésios como selvagens”.

Artistas não são seres de exceção imunes à lei, como argumentou George Orwell em seu clássico ensaio sobre Salvador Dalí (Benefit of Clergy). Mas mais estúpido ainda — e, em muitos casos, anacrônico — é atirar pedras na obra em razão dos pecados de quem a produziu. Desse jeito, vamos acabar cancelando todo artista que não tenha sido santo: vai sobrar só o Gonzaguinha, e olhe lá.

Mahana no Atua (O Dia do Deus), quadro pintado por Paul Gauguin em 1894

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