Urgência sanitária
Enfim, o Brasil tem um plano de vacinação. Ou melhor, o arremedo de um plano. Sob pressão da população, que acompanha atentamente a imunização de americanos e britânicos, e do STF, o governo federal anunciou, na quarta-feira, 16, como pretende vacinar 175 milhões de brasileiros no ano que vem. Segundo o Ministério da Saúde, o Brasil tem negociações em andamento para adquirir 350 milhões de doses. O governo ampliou o número de fabricantes que poderão fornecer as vacinas e incluiu presos e comunidades quilombolas entre os que serão atendidos inicialmente. No dia seguinte, o presidente Jair Bolsonaro assinou uma medida provisória que autorizou um crédito de 20 bilhões de reais para cobrir todas as despesas com a imunização.
Para o governo, a principal dificuldade será garantir um estoque de vacinas que tenham se provado eficientes em prevenir a Covid-19. Das cerca de 350 milhões de doses anunciadas, 210 milhões são da parceria entre a AstraZeneca e a Universidade de Oxford, que assinaram um contrato de fabricação com a Fiocruz. Erros no decorrer do estudo clínico, porém, atrasarão o pedido de registro. Pelo consórcio Covax Facility, lançado pela Organização Mundial de Saúde, o governo pretende conseguir mais 42,5 milhões de doses. Mas nem sequer foi definido ainda quais vacinas serão compradas. Da americana Pfizer, o objetivo é adquirir 70 milhões de doses. Dessas, apenas 2 milhões seriam entregues no primeiro trimestre do ano que vem. Da farmacêutica Janssen, cuja vacina ainda não teve a eficácia comprovada, serão adquiridas 38 milhões de doses, sendo que as primeiras 3 milhões só chegarão no segundo trimestre de 2021.
A constatação óbvia, logo após o lançamento do plano, foi a de que o Brasil tinha lançado um projeto de imunização, mas sem vacina. Na quinta, 17, o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, em uma audiência no Senado, aumentou o número imediato. Segundo ele, o Brasil receberá 24,5 milhões de doses de vacinas em janeiro. Na conta, ele colocou mais 9 milhões de doses da Coronavac, que é da chinesa Sinovac e começou a ser produzida pelo Instituto Butantan, ligado ao governo de São Paulo. Segundo o diretor do Butantan, Dimas Covas, a instituição ainda aguarda uma formalização do Ministério da Saúde para finalizar o acordo de compra e distribuição da Coronavac.
Foi o desespero para conseguir logo os imunizantes que levou o presidente Jair Bolsonaro a engolir a vacina de Doria. Em outubro, o ministro da Saúde chegou a prometer a Coronavac a governadores. Foi desautorizado de maneira rude pelo presidente. “O povo brasileiro não será cobaia de ninguém”, disse Bolsonaro. No início de novembro, o presidente chegou a comemorar indecentemente a morte de um voluntário no estudo clínico da Coronavac. “Morte, invalidez, anomalia. Esta é a vacina que o Doria queria obrigar a todos os paulistanos tomá-la”, escreveu ele nas redes sociais. No lançamento do plano de vacinação esta semana, o presidente chegou a ensaiar um mea-culpa. “Se algum de nós extrapolou, ou exagerou, foi no afã de buscar solução”, disse.
Além da falta de garantia de que haverá vacinas, há muita incerteza em relação ao cronograma. Pazuello já deu ao menos quatro datas para o início da vacinação. Recentemente, passou a falar em meados de fevereiro. O vaivém no prazo para liberação do uso emergencial de produtos também causa confusão. O governo inicialmente estimou em dois meses, e depois reduziu para 10 dias, o prazo para análise de pedidos. A legislação em vigor obriga a Anvisa a apreciar os pedidos em no máximo 72 horas, desde que o imunizante tenha recebido o aval do órgão regulador americano, europeu, britânico ou chinês. Os sucessivos avanços e recuos são particularmente preocupantes, porque a doença voltou a crescer em uma velocidade assustadora. O Brasil nesta quinta registrou mais de mil mortes em 24 horas, algo que não acontecia desde setembro. “Mesmo em um cenário otimista, não vamos começar a vacinar a população antes de fevereiro. Até lá, a desgraça estará instalada no país”, diz o professor Domingos Alves, do Laboratório de Inteligência em Saúde da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP. “O que vamos enfrentar a partir do Natal e do Ano Novo é uma tragédia.”
Além de o plano de imunização do governo ser repleto de lacunas, especialistas apontam outra dificuldade: as dúvidas dos brasileiros quanto à segurança e eficácia. O movimento antivacinação, forte em países como os Estados Unidos e crescente no Brasil, ganhou amplitude com Jair Bolsonaro, políticos trevosos e religiosos. O presidente já levantou suspeitas sobre os imunizantes em diversas ocasiões. Nesta quinta, 17, ele voltou a declarar que não tomará a vacina e falou de possíveis efeitos colaterais. “Na Pfizer, está bem claro no contrato: nós não nos responsabilizamos por qualquer efeito colateral. Se você virar um chipanz… se você virar um jacaré, é problema de você. Não vou falar outro bicho aqui para não falar besteira. Se você virar o Super Homem, se nascer barba em alguma mulher aí ou um homem começar a falar fino, eles não têm nada a ver com isso. Ou o que é pior, mexer no sistema imunológico das pessoas. Como você pode obrigar alguém a tomar uma vacina que não se completou a terceira fase ainda? Que está experimental?”, disse o presidente, que chegou a dizer que o governo exigira a assinatura de um termo de consentimento de cada cidadão vacinado, um evidente despropósito.
Outro político obscurantista é Roberto Jefferson, ex-deputado e presidente nacional do PTB. “Os globalistas prepararam uma vacina para mudar o nosso DNA, que nos foi dado por Deus”, escreveu nas redes sociais. Também nesta semana, um pastor do Ceará afirmou de maneira criminosa, durante um culto lotado, que a Coronavac “tem HIV”. A consequência é que, desde agosto, a porcentagem de brasileiros que não pretende se imunizar pulou de 9% para 22%, segundo o Datafolha. O descrédito, aliado aos problemas operacionais, pode ter resultados catastróficos. “Se o Brasil vacinar 15% ou 20% da população, isso não vai resolver nada. É preciso um percentual alto de cidadãos imunizados para interromper a circulação do vírus”, explica Ana Maria Costa.
A inércia do Ministério da Saúde em implementar a vacinação contra a Covid-19 frustra sobremaneira os pesquisadores da área em razão da tradição do país, que sempre foi uma referência internacional na aplicação dessas políticas públicas. Criado em 1973, o Programa Nacional de Imunizações ampliou as bases de cobertura vacinal em uma nação de dimensões continentais e se transformou em um bem-sucedido projeto de saúde pública. Antes mesmo da implantação do programa, o Brasil já havia tido grande êxito em campanhas como a erradicação da varíola, em 1966, e no plano nacional de controle da poliomielite, em 1971. Hoje, com os avanços tecnológicos que permitiram o desenvolvimento de vacinas em tempo recorde, o Brasil enfrenta retrocessos, não por limitações técnicas, mas por questões políticas e ideológicas. Nesta sexta-feira, aliás, o STF deu um ponto final a mais uma questão fora de lugar plantada por Bolsonaro: a vacinação contra a Covid-19 não será obrigatória, mas compulsória. Ou seja, o estado poderá impor medidas restritivas a quem não tomá-la, para o exercício de atividades e a locomoção por território brasileiro e viagens internacionais.
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