Edilson Rodrigues/Agência SenadoIdeia de que Brasil é o país dos acordões e dos consensos vai ficando cada vez mais distante no retrovisor e sequer sabemos se isso é bom ou ruim

A desconfiança como regra

Reflexões sobre o livro Comunidade e democracia: a experiência da Itália moderna, do cientista político Robert Putnam, e seus reflexos no Brasil
22.03.24

O cientista político Robert Putnan escreveu um influente livro – Comunidade e Democracia na Itália Moderna – no qual ele sugeriu que o desempenho de governos regionais italianos dependia da existência de mais ou menos capital social. Esse conceito, por sua vez, tem relação com o nível de confiança interpessoal existente entre os membros de uma comunidade.

Se as pessoas possuem laços razoáveis de reciprocidade e horizontalidade, os comportamentos se tornam mais previsíveis, mais adequados, há menor necessidade de coerção estatal para fazer as pessoas cumprirem as leis e, consequentemente, maior sensação de segurança em relação a como a vida transcorre. Por outro lado, se uma sociedade é hierarquizada, com castas instransponíveis, fragmentada e rancorosa, a desconfiança impera e o poder, sem legitimidade, precisa recorrer à força com frequência para fazer valer seus mandamentos e os indivíduos se sentem inseguros.

Uma sociedade do primeiro tipo vai levar a localidades com padrões modernos de governança, transparência e serviços públicos eficientes. No segundo time estão as regiões atrasadas, corruptas, violentas e patrimonialistas.

Putnan relacionou indicadores de desempenho de diferentes regiões na Itália com presença maior ou menor de capital social (confiança interpessoal). O problema, a partir daí, principalmente para os países menos desenvolvidos, como o nosso, é saber o que gera ou não capital social. Nesse sentido, Putnan não trouxe uma notícia boa. Com algum determinismo, afirmou que o que define a quantidade de confiança de uma sociedade vem do seu processo histórico de formação. Ou você fez um bom caminhou ou já era.

Para todos que trabalham, de alguma forma, para contribuir com a melhoria desse projeto coletivo chamado Brasil, é claro que o determinismo de Putnan não é aceitável enquanto fator de imobilismo. Nesse sentido, especialmente nos anos 90, foram iniciadas várias experiências institucionais para criar capital social, como os conselhos nos anos do PSDB ou as experiências de orçamento participativo em âmbito regional em cidades governadas primeiro pelo PDT e depois pelo PT.

O avanço da educação, da pulverização dos meios de comunicação e da urbanização, no entanto, acelerou um processo de insatisfação com as instituições políticas antes que essas medidas produzissem efeitos e colocou o desenvolvimento civilizatório e político do país em uma sinuca de bico. As mudanças sociais recentes, ao invés de incentivarem uma transformação incremental, “gradual e segura” para o bem, na verdade agiram como ondas de choque que combaliram o velho castelo, mas não o derrubaram.

Não é novidade que, no Brasil, há facilidade para que o velho e o novo coexistam com cada um preservando o seu espaço. A revolução burguesa paulista, por exemplo, conviveu com a manutenção das velhas estruturas aristocráticas de outras regiões e o país criou seus pactos de preservação de espaços para que não se perdesse a integridade territorial.

Mas, a questão é, há limite para a sustentação dessa situação? Saber isso é importante porque depende-se dessa resposta para ter capacidade de construir consensos necessários para que a sociedade reme na mesma direção. Em vez disso, no entanto, o que se tem visto são processos de competição que acabam se refletindo em políticas públicas.

Por exemplo, nesta semana, o Congresso aprovou pautas que contradizem a ideologia do Executivo, como a formatação do novo ensino médio num formato que lembra mais os governos Michel Temer e Jair Bolsonaro do que aquilo que imagina o presidente Lula, e o fim das saidinhas de presos, também com postura contrária ao que acredita o PT. Na reforma tributária, parlamentares correm para apresentar projetos de regulamentação do novo modelo com o objetivo de criar antecipadamente contrapontos ao que o Executivo está formulando.
Como o governo vai implementar uma política educacional ou prisional com a qual ele não concorda, mas teve que engolir? Nesse sentido, as condições ideais para alcançar um modelo político desenvolvido, tal como Putnan imaginou, parecem mais uma utopia ingênua do que um horizonte que pode realmente ser alcançado.

Por ora, não parece ser possível atingir mais do que um sistema político no qual a, mesmo que feroz, continue ocorrendo “dentro das quatro linhas”, com a sociedade agindo mais para limitar governos do que para apoiá-los, ocorrendo apenas inversões de papéis quando há troca de comando entre a esquerda e a direita. Aos poucos, a ideia de que o Brasil é o país dos acordões e dos consensos vai ficando cada vez mais distante no retrovisor e sequer sabemos se isso é bom ou se é ruim.

E aí vem a mãe de todos os dilemas: é possível construir boas instituições em uma sociedade dividida e faccionada? É isso que teremos que responder futuramente considerando que a desconfiança é condição dada.

 

Leonardo Barreto é cientista político e diretor da VectorRelgov.com.br

 

As opiniões emitidas pelos colunistas não necessariamente refletem as opiniões de O Antagonista e Crusoé

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
  1. É absolutamente possível, desde que a divisão da sociedade não impeça acordos de regime em prol do desenvolvimento do país. Foi possível na construção de todo país de 1º mundo que hoje existe, não tem por quê ser diferente aqui. O que dificulta é a falta de compromisso e responsabilidade dos polos conflitantes aqui.

  2. Gostei do dilema apresentado no último parágrafo do seu artigo. Não temos uma resposta pronta mas um dia vamos encontrar um caminho viável.

Mais notícias
Assine agora
TOPO