Wanessacamargo via InstagramWanessa Camargo: A artista ejetada do BBB não parece compreender que a Igreja Antirracista dos Últimos Dias prega a penitência, não o perdão

Putin, BBB, Janja: a notícia irrelevante e a relevância que não é notícia

Uma reflexão desalentada sobre o que se aprende ao se ler somente os títulos de matérias jornalísticas em tempos recentes
22.03.24

O comentarista de título é uma instituição do X. Está lá desde o tempo em que a rede se chamava Twitter e censurava reportagens constrangedoras para o Partido Democrata. É aquele sujeito que se imagina o ombudsman do mundo e sempre acha que a imprensa está contra suas paixões políticas – pois o comentarista de título com frequência é do tipo que carrega um demagogo barato dentro de seu coração peludo. Não estarei adulando o leitor desta Crusoé quando digo que ele pertence a outra estirpe. No espaço de comentários aqui abaixo do texto, tenho encontrado elogios, críticas, discordâncias civilizadas e às vezes grosserias gratuitas – mas é sempre possível atestar que meu texto foi lido. 

Leio sempre o que se diz aqui. Costumava ler ocasionalmente os comentários no Twitter da revista, mas há uns bons anos – foi antes de a rede ser comprada e rebatizada por Elon Musk – decidi não fazer mais isso. Lembro até do comentário que me levou a essa resolução: abespinhado porque o título do meu artigo trazia alguma crítica ao então presidente Jair Bolsonaro, um sujeito disse que eu sou um índio (por causa do nome Jerônimo, suponho) que atira flecha para tudo que é lado mas nunca na direção de Alexandre de Moraes. Pois naquele mesmo texto havia críticas ao xerife do STF… 

Não sou uma pessoa coerente: de uns tempos para cá, venho adquirindo o hábito que desprezo. Não só no X, mas em portais jornalísticos, topo com um título e já concluo que não preciso abrir o texto. Saí com a opinião feita só de ver as chamadas de três notícias recentes. Dizem respeito a uma celebridade de reality show, a um ditador com influência global e à esposa de um líder regional que presta apoio a esse ditador. 

O primeiro título é de uma notícia sobre o o Big Brother Brasil. Haverá quem julgue de saída que o BBB é tema desprezível, mas eu não tenho recursos para me instalar na proverbial torre de marfim. Embora não esteja acompanhando a edição atual, já vi o programa em anos passados e até escrevi uma coisa ou outra a respeito. Dispenso o cansativo recurso retórico de afetar uma distância olímpica das vulgaridades que a patuleia aprecia. 

Pois uma certa Wanessa Camargo – de quem nunca tinha ouvido falar – decidiu se declarar “antirracista”, segundo li nas chamadas de alguns sites de notícias. Pelo que me conta uma vizinha que frequenta blogues de fofoca, ela saiu do BBB há pouco, e não por voto popular: foi expulsa por umas diferenças que teve com um jovem concorrente negro. O que capturou minha atenção nesse caso foi uma palavra presente em todos os títulos: antirracista.  

Pelo menos desde a explosão do Black Lives Matter, em 2020, a palavra tornou-se onipresente no debate público. Engana-se quem pensa que ser antirracista significa simplesmente posicionar-se contra o racismo. O antirracismo implica a aceitação de uma série de cláusulas de fé: privilégio branco, racismo estrutural, apropriação cultural, decolonização. Talvez um ou dois desses termos sejam úteis para entender os problemas raciais contemporâneos, mas não é isso que importa: o valor deles não é conceitual, mas ritual. Fazem parte da liturgia antirracista.  

Segundo ouvi em conversas no salão do barbeiro, a senhora recém convertida ao antirracismo – esqueci seu nome dois parágrafos atrás – tem ou tinha uma carreira no showbiz. Hoje, é banal que artistas e celebridades declarem-se antirracistas em programas de entrevista e cerimônias de premiação. Mas não dá para fazer o mesmo depois da exposição negativa no reality show mais popular do país. A artista ejetada do BBB não parece compreender que a Igreja Antirracista dos Últimos Dias prega a penitência, não o perdão. Ela se declarou fiel devota quando ainda não passou pela iniciação nos mistérios da fé. Antes de se apresentar como antirracista, talvez devesse ter dito que é uma “racista em desconstrução”. 

Vladimir Putin: eis um nome que ninguém pode fingir não conhecer, infelizmente. A sua reeleição foi uma das notícias da semana que passou. Não gostaria de ser editor de portal jornalístico nessas horas. Como resumir o fato em um título breve? 

Agora há pouco, empreguei a palavra “reeleição”, que é tecnicamente correta – os cidadãos russos foram às urnas em uma eleição nacional – mas oculta o essencial: os concorrentes de Putin eram fantoches aprovados pelo Kremlin para dar verniz democrático a um regime ditatorial. Alguns títulos escorregaram feio ao dizer que o autocrata ganhou de lavada, como se pudesse ser diferente (quem não votaria em Putin quando um soldado com a AK-47 em mãos pode entrar na cabine de votação?). E as mais bem intencionadas tentativas de ser fiel aos fatos só conseguiram ser redundantes: informaram que uma eleição fraudada foi vencida pelo fraudador. 

Aparentemente, as pessoas gostam de saber da ex-BBB que se filiou aos Black Panthers, de surubas em ilhas tropicais, da farofa da influencer e da farsa para esconder a morte da princesa (Como é? Ela não morreu? Mas por que diabos fabricaram aquela foto?). Essas irrelevâncias não deixem de ser notícia. A “reeleição” de Putin é relevante, mas não é exatamente notícia. Não pode ser novidade o que todo mundo sabe que vai acontecer. 

Último título: “’O Brasil teve uma interrupção da democracia por seis anos’, diz Janja em evento na ONU”. É uma dupla irrelevância: conjuga um convescote da ONU com a figura decorativa da primeira-dama. E não é notícia porque é coisa velha: há oito anos os petistas estão dizendo que houve um golpe em 2016. “Segundo o PT, democracia só é democracia com Lula presidente”, eu já dizia em uma das minhas primeiras colunas nesta revista, em 2022. 

Um título recente do Estadão resume bem o que a “restauração da democracia” representa: “Andrade Gutierrez e Novonor, ex-Odebrecht, vencem licitação de obras de refinaria pivô da Lava Jato”. Nesse caso, eu li o texto todo.  

Jerônimo Teixeira é jornalista e escritor

 

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  1. Li o texto e gostei. Gosto das suas crônicas. Muitas vezes também leio só a manchete. Assino a Folha, O Glogo e o Estadão. Com relação aos dois primeiros, a manchete basta. Basta também saber o nome do colunista.

  2. Excelente artigo, parabéns Jerônimo! Infelizmente temos que conviver com toda esta pouca vergonha. Com todos os poderes corrompidos dificilmente sairemos deste buraco.

  3. Manchetes continuam muito importantes: não para se concluir nada, mas para se eliminar 90% do conteúdo de muitos portais de notícias. Mas que se dê alfalfa para quem a deseja!

  4. Enquanto nosso futebol continuar fazendo gol de mão e essa excrescência chamada BBB tiver audiência, nosso país não vai pra frente …

  5. Aqui estamos, gostando ou não temos que engolir assuntos tão espinhosos e, o pior, não temos mais humoristas aptos a fazer piadas sem serem cancelados ou sofrerem processo.

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