Vox España via FlickrO mundo é mais complexo do que essa fantasia infantiloide do militante

A ciência da manipulação econômica

Os 100 dias do governo Milei deixam evidente o baixo nível da mídia brasileira em reportar números além da primeira linha
22.03.24

Cerca de um século antes de Adam Smith condensar as ideias que o tornariam o “pai da economia”, outro inglês, Sir William Petty, dava início a um campo essencial para os dias atuais: os censos econômicos.

Petty recebeu a tarefa do rei inglês de saber o quão rico eram os irlandeses. Em seu cálculo, três séculos antes de Simon Kuznets desenvolver o cálculo do PIB (a riqueza produzida por um país ao longo de um ano), Petty concluiu que os irlandeses possuíam propriedades avaliadas em £235 milhões.

A renda obtida por essas propriedades, por sua vez, era equivalente a £15 milhões. Considerando que a renda média de um irlandês era de £13,6/ano, Petty concluiu que a riqueza anual gerada pelos irlandeses era de £40 milhões. Subtraído o retorno do capital fixo (terras e outras propriedades), ele concluiu que a renda restante viria do “capital humano”. Na prática, foi um vanguardista. Ou “gênio”, como seria o correto para se referir a alguém tão a frente de seu tempo.

Menos nobre, porém, são as razões que levaram o rei Charles II a financiar as descobertas de Petty.

Em suma, o Reino Unido estava em guerra contra os Países Baixos. Charles queria entender o quanto conseguia obrigar seus súditos a pagar de impostos para financiar sua guerra.

A ideia de renda nacional, portanto, nasce não da necessidade de colaborar com o padrão de vida da população, mas para saber como financiar uma guerra.

Como essa, diversas outras descobertas humanas tiveram o mesmo destino, também na economia.

William Philips foi outra destas figuras geniais. Nascido em uma região agrícola da Nova Zelândia, Philips se tornou um mecânico proeminente. Lutou na segunda guerra, onde foi capturado por japoneses, chegando a construir um rádio escondido em uma sola de sapato (o próprio Agente 86), para que os prisioneiros tivessem notícias da guerra).

Após a guerra, Philips mudou-se para Londres, onde viria a se tornar membro da London School of Economics (LSE). Por lá, desenvolveu um computador que, dados os inputs, conseguia descrever o impacto preciso nas diversas variáveis econômicas.

Por meio da sua curva de Philips, moldou o mundo durante a geração “Baby Boomer”. Na prática, Philips dizia que era impossível haver inflação alta e desemprego alto ao mesmo tempo.

Isso de fato era verdade, até que deixou de ser, em meio a estagflação dos anos 70.

Políticos usaram e abusaram deste conceito para inflar gastos e imprimir moeda visando estimular a economia.

Em suma: para a política, se um índice econômico pode ser medido, ele pode então ser manipulado.

E isso não é nada diferente quando falamos do mais importante índice econômico de todos: o índice de inflação.

Na prática, um índice de inflação mede o poder de compra da população.

Novamente, os primeiros esforços para se medir essa questão vieram por razões espúrias. Em 1780, por exemplo, o governo de Massachusetts buscava uma forma de compensar os soldados que sofriam com as consequências da inflação, responsável por dizimar seus soldos.

Os índices de inflação modernos, derivam de um conceito relativamente simples: o preço pago pelo consumidor. O que por sua vez abre margem para uma questão não tão simples.

Se o preço ao consumidor não sobe, a inflação não existiu? Explico com um caso ainda vivido na memória dos brasileiros.

Passo 1) Suponha que a cesta de consumo das famílias brasileiras inclua 20% destinados aos combustíveis.

Passo 2) Agora suponha que um grande choque no preço do petróleo faz o preço dos combustíveis subir 50%!

Tudo o mais constante, o índice de inflação daria um salto de 10% (20*50%)

Como você sabe, uma inflação de 10% é bastante ruim para os negócios (políticos). Como a reagir a isso então?

Passo 3) pague o aumento de preços antes que ele chegue aos consumidores.

No Brasil do governo Dilma, a tarefa coube a Petrobras. Estima-se que a empresa tenha gasto R$100 bilhões comprando combustível mais caro do que o preço que vendia aos consumidores.

Já no Brasil do governo Bolsonaro, a solução foi cortar impostos, usando parte da alta de arrecadação (que chegou a 30% em 2020). Quase um cashback.

Militantes de ambos os lados tem seus argumentos. Uns dizem que a função da Petrobras é essa mesmo. Outros que a decisão de cortar impostos é mais responsável.

Outros mais chato, como eu, criticam a ideia de que o governo deva escolher qual produto vai interferir no preço, especialmente quando este governo cobra mais impostos sobre a inflação (ou deixa de reajustar a tabela do Imposto de renda).

Mas o que eu acho não vem ao caso aqui. Minha tarefa é te contar uma questão que vai lhe ajudar a se vacinar contra manchetes tendenciosas e narrativas torpes.

E elas estão a todo vapor em um lugar em especial: a Argentina.

Javier Milei completou 100 dias de governo. Para a mídia brasileira, estes 100 dias podem ser resumidos em 2 números: inflação e pobreza.

Sim. Que Milei não criou nenhum dos 2, até mesmo o mais cínico dos críticos tem ciência.

Mas a questão vai além. A mídia que em dezembro de 2023 alardeava que o preço das fraldas descartáveis subiu 300%, e que a inflação bateria 100% em dezembro (foi de 25%), parece pouco preocupada em entender, que dirá explicar.

Milei assumiu em dezembro com a promessa de mudar a política implementada até então. E uma dos pontos centrais dessa política diz respeito aos combustíveis e energia.

A Argentina chegou ao fundo do poço em 2022. Naquele ano o país gastava 4% do PIB com subsídios nessa área. Seria como o governo federal brasileiro gastar 200 bilhões de reais subsidiando energia e combustíveis. Até 76% da conta de luz dos argentinos, mesmo os ricos, era paga pelo governo.

Ao acabar com essa farra, o resultado foi inevitável. O consumidor passou a pagar diretamente algo que ele antes pagava indiretamente.

E a razão para Milei ter feito isso vai além de uma questão fiscal. O governo argentino vivia em déficit. Para cobrir estes déficits, ele imprimia dinheiro.

Em suma, para que o milionário em Palermo pagasse apenas 50 dólares na sua conta de luz, o governo incendiava a inflação, que levou 50% da população a viver na pobreza.

Disso, claro, o UOL não irá falar. No máximo como nota de rodapé. Outro ponto relevante nesta história está na própria ideia de aumento de pobreza.

Jornais brasileiros têm divulgado um aumento da pobreza de 49 para 57% entre dezembro e janeiro. O problema? Dados como estes são coletados anualmente. O que se tem até o momento são apenas estimativas.

Isso significa que podem ser falsos? Sim, mas provavelmente são verdadeiros, por uma razão um pouco mais complexa do que aquela que supõe o militante, de que “Milei é do mal e quer ver a população na miséria”.

Pobreza é medida em poder de compra, uma variável atrelada ao câmbio, dado que inúmeros produtos são cotados em dólar.

Nos últimos 4 anos o Peso perdeu 99.4% do seu valor. Mas uma parte não mudou tanto: o câmbio do governo.

No ápice da loucura, a Argentina chegou a ter 18 taxas de câmbio. Tinha o dólar Qatar, a taxa que os turistas pagavam para comprar dólares e assistir a copa do Mundo. O dólar Malbec, usado para converter exportações de vinho, o dólar Coldplay, para comprar ingressos de shows estrangeiros, o dólar Netflix, o dólar soja, dólar petróleo e assim vai.

Milei decidiu aproximar o dólar oficial do dólar usado pelos argentinos no dia a dia, o “dólar Blue”.

Ao desvalorizar o dólar, a pobreza que se escondia no câmbio oficial, foi exposta.

Nada disso, claro, significa que a situação da Argentina seja tranquila, ou que exista alguém dando risadas e falando “as pessoas estão na miséria, mas temos superávit nas contas públicas”.

O mundo é mais complexo do que essa fantasia infantiloide do militante. Afinal, “A verdade é como a poesia. E a maioria das pessoas odeiam poesia”.

 

Felipe Hermes é jornalista

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  1. Há muito incompetente na imprensa brasileira, mas neste caso é escolha editorial de apenas se reportar o que é mau, mesmo que seja apenas uma meia verdade

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