OCapuchinhoCapuchinhos dão bênçãos a carros em Curitiba: todo ato do homem religioso o liga ao sagrado

A sacralidade do cotidiano

As crenças e o ritos podem não representar aquilo em que hoje o indivíduo acredita, mas a crença dos seus antepassados, que lhe foi transmitida
22.03.24

Quando alguma coisa grave acontecia, minha avó Helena exclamava: “Pela hóstia consagrada!”. Minha bisavó, Dona Rozilda, rezava o terço todo dia e conhecia cada oração para situações específicas. Meu padrasto diz que a mãe – que foi uma católica fervorosa – não tinha defeitos. Minha mãe questionava: “Como é possível uma pessoa não ter defeitos?”. E ele insistia: “Ela era uma santa, não tinha defeitos”.

Um conhecido cada vez que compra um carro o leva para Aparecida para obter uma bênção. Outro teve um problema no carro que parecia insolúvel até que o banhou com água benta, aí o carro parou de quebrar. Uma senhora que conheço, que realiza missas em sua casa, tem um altar e uma imagem religiosa em cada canto da casa. Outra costuma cozinhar com sal exorcizado e água benta.

O leitor terá, certamente, outros exemplos semelhantes, do seu próprio entorno.

Ainda hoje o brasileiro – até aquele que está afastado da religião – costuma colocar um terço (ou vários) pendendo sobre o retrovisor do carro (assim como vi na Rússia colocarem ícones religiosos no painel de carros e ônibus) para proteger-se.

E benzer-se em frente a cemitérios e igrejas. E batizar os filhos na Igreja Católica, mesmo não frequentando a igreja.

Mircea Eliade diz que todo ato do homem religioso o liga ao sagrado. E o que ele fala é literal: de fato, todo ato do homem religioso, cada aspecto da sua vida, cada data importante – os nascimentos, os ritos de passagem, a preparação da morte, a reverência as mortos, tudo o liga ao sagrado. Ele reza ao acordar e antes de dormir, antes de cada refeição, reza o terço, reza na missa, reza por intenções particulares e pelos os mortos.

A vida social, amorosa, sexual, comunitária, profissional, é totalmente moldada pela religião – pelas regras, implícitas e explícitas, pelos costumes e ritos. A religião não é algo vivido nos fins de semana ou nas ocasiões especiais, é vivida cotidianamente. Não são poucos os católicos que conheço que vão à missa e comungam todo dia. Participam de procissões, de peregrinações, viajam a lugares santos.

Eles carregam consigo relíquias de santos, escapulários, colocam imagens de santos nas paredes, na carteira, em adesivos no carro. Têm seus santos de devoção geral e específica, para assuntos especiais.

Fustel de Coulanges, no clássico livro A Cidade Antiga, diz que se observarmos as instituições dos antigos nós as acharemos confusas, extravagantes. “Diante, porém, dessas instituições e leis coloquemos as crenças, os fatos torna-se-ão mais claros e a explicação apresenter-se-á por si mesma”, diz ele.

Como exemplo, ele cita os contemporâneos do filósofo romano Cícero, que praticavam ritos que já não correspondiam às suas crenças. Segundo Coulanges, se analisamos os ritos atentamente, podemos encontrar o que os homens pensavam há quinze ou vinte séculos antes deles.

O mesmo acontece no Brasil de hoje. As crenças e o ritos podem não representar o que hoje o indivíduo acredita, mas o que seus antepassados acreditavam, e lhe foi transmitido. O culto aos antepassados, por exemplo, está na origem do sentimento religioso, segundo Fustel de Coulanges – o que explica o pensamento do meu padrasto, para quem a mãe era uma santa.

Gilberto Freyre fez a relação entre o culto dos antepassados na Antiguidade e no período colonial brasileiro em Casa Grande & Senzala. Diz ele: “Abaixo dos santos e acima dos vivos ficavam, na hierarquia patriarcal, os mortos, governando e vigiando o mais possível a vida dos filhos, netos, bisnetos”. E conclui: “Um culto doméstico dos mortos que lembra os antigos gregos e romanos”.

 

Josias Teófilo é cineasta, jornalista e escritor

 

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  1. Ainda estamos muito influenciados pela sacralidade, pelo objeto e esquecemos o que é mais importante praticarmos ou cultivarmos: a religiosidade, a espiritualidade.

  2. A superstição, a verdade nesses rituais e mezinhas, diga-se, é uma tradição adorável mas condenada.

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