O fiador da ‘alternativa’
A palavra conciliação assume uma coloração nostálgica quando associada ao ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. No início da década de 1990, quando ainda exercitava a habilidade de costurar apoios improváveis, FHC recomendou aos tucanos mais refratários a uma aliança com o PFL a obra Um Estadista no Império, de Joaquim Nabuco. Trata-se de um tratado sobre a política conciliadora do polêmico Marquês do Paraná, ex-primeiro ministro do Brasil Imperial responsável pela estabilidade do reinado de D. Pedro II. Convencer a ala tucana mais à esquerda a digerir a união com os liberais do PFL não foi uma tarefa trivial, mas deu certo. Agora, quase três décadas depois, o ex-presidente avoca para si uma missão não menos complexa: a de construir uma candidatura de consenso no espectro político de centro para as eleições presidenciais de 2022.
Na quarta-feira, 11, FHC começou a ler o livro This Blessed Plot, Britain and Europe from Churchill to Blair, de Hugo Young, ex-comentarista político do jornal The Guardian. É um relato da ambivalência britânica em relação à integração europeia desde o pós-guerra. “A Grã-Bretanha lutou para conciliar o passado que ela não podia esquecer com o futuro que não podia evitar”, escreve Young. O livro, evidentemente, não guarda relação com a política brasileira nem com os partidos daqui. Mas esse pode ser exatamente o caminho para os políticos de centro, se quiserem obter êxito eleitoral daqui a três anos: saber conciliar um passado que não pode ser deixado para trás com o futuro inevitável, qual seja, ou eles se unem ou morrem na praia de novo.
Ao contrário do PSDB e do antigo PFL, o bloco que se convencionou chamar de “centro democrático progressista” pode até convergir nas ideias — a maioria se declara liberal na economia e nos costumes. A questão, nesse caso, é harmonizar interesses políticos e pessoais. Não são poucos. O governador de São Paulo, João Doria, trabalha com afinco para ser o candidato do PSDB. Como ele acha que controla o partido, espera que os tucanos marchem com ele. Ainda sem legenda, mas assediado por mais de uma, o empresário e apresentador Luciano Huck cada vez se preocupa menos em esconder almoços, jantares e encontros para discutir uma possível candidatura. Já o governador do Rio Grande do Sul, o tucano Eduardo Leite, embora neófito na política, apresentou-se recentemente para o jogo — como Huck, incensado por FHC.
Em reuniões com líderes e dirigentes partidários, FHC tem dito que os partidos interessados em marcar diferenças em relação a PT e Bolsonaro devem ser enérgicos o bastante de modo a não emitir sinais de fraqueza no jogo sucessório, mas cautelosos o suficiente para não conferir pressa na escolha do candidato, expondo-o prematuramente. Por isso, ao mesmo tempo que lança hipóteses eleitorais no tabuleiro do xadrez político, ele trabalha nos bastidores para impedir que se assanhem antes da hora – e cometam harakiri, o ritual japonês de autodestruição. Dentro do que sempre chamou de a “utopia do possível”, o ex-presidente defende o lançamento da candidatura até o segundo semestre de 2021, se possível por consenso.
No trabalho de acomodar posições aparentemente inconciliáveis, o objetivo de FHC é não reeditar 2018, quando a pulverização de candidaturas minou as chances das siglas de centro de alcançar o segundo turno. O risco de o filme se repetir é real. Segundo as últimas pesquisas, Bolsonaro se solidifica no patamar de 33%, com viés de alta caso os bons auspícios da economia se confirmem. Já o PT, a despeito das sérias dificuldades para aglutinar a esquerda, permanece no nível histórico de 29%. Ou seja, se o centro democrático não conseguir apresentar à sociedade um nome dotado de musculatura eleitoral e densidade política em condições de disputar a eleição de igual para igual com Bolsonaro e o PT, restará pavimentada de novo e mais uma vez a estrada para a polarização.
O ex-presidente não está sozinho na empreitada de unir as legendas de centro. Auxiliam FHC nomes como o presidente do Cidadania, Roberto Freire, o ex-governador Paulo Hartung, o economista Armínio Fraga, o ex-ministro Raul Jungmann, o empresário Guilherme Leal e o publicitário Nizan Guanaes. Recentemente, foi incorporado ao time o ex-ministro da Fazenda Pedro Malan. Em artigo publicado no jornal O Estado de S.Paulo, Malan discorreu sobre o que chamou de “ousadia da moderação”. “Saídas deverão sempre passar pelo diálogo franco, pela resolução de diferenças e conflitos via soluções de compromisso, sem a famosa escolha binária entre o ‘nós e eles’ que tanto mal causou e vem causando ao país”, escreveu.
Em 2018, Huck esteve próximo de concorrer. Quase assinou a ficha de filiação do PPS, hoje Cidadania. Sempre muito perto de movimentos de renovação, passou a contratar pesquisas de opinião e a circular com mais assiduidade no meio político. Ele e a mulher, Angélica, recuaram quando perceberam que o noticiário político é bem distinto daquele tradicionalmente dedicado às celebridades de TV. Enquanto um exibe a dolce vita do casal estrelado, o outro é uma máquina de moer: revira a vida do político de cima a baixo e busca uma face que ninguém normalmente gosta de expor aos raios solares. O que mudou de lá para cá é o que Huck classifica intramuros de “chamamento”. “Muitos políticos começaram a bater à porta argumentando que ele seria o único capaz de quebrar a polarização. E ele passou a acreditar nisso”, afirmou a Crusoé um integrante do grupo.
Embora aparentemente disposto a seguir adiante com a candidatura, Huck ainda não bateu o martelo. Sabe que a entrada na política pode representar um ponto de não retorno, como se atravessasse um rubicão pessoal. Por isso, ele tende a ir como se diz na gíria: “só na boa”. Ou seja, quer entrar no jogo se tiver quase certeza de que vai chegar lá. Como isso é quase impossível no atual quadro político, quer no mínimo mitigar os riscos. Falta, porém, combinar com os russos — no caso, os aspirantes ao Planalto das demais legendas — de que ele será o nome certo na hora certa. No PSDB, comenta-se que Doria só abriria mão se uma outra candidatura se impusesse politicamente de maneira irrefutável. Fernando Henrique tece ressalvas: “Huck é uma celebridade. Ainda precisa mostrar que é capaz de ser um líder político”, diz. FHC é amigo da família de Huck, acredita que o apresentador midiático tenha aderência no eleitorado, penetração no Nordeste, mas sabe que política é mesmo como nuvem. E ela se moverá muito até às vésperas do ano eleitoral.
Além disso, assim como os atuais postulantes ao Planalto, o personagem principal do livro de Joaquim Nabuco, aquele recomendado por FHC aos tucanos na década de 1990, não era livre de idiossincrasias. Honório Hermeto Carneiro Leão, o Marquês do Paraná, dizia que conciliação era “o sossego do espírito, a calma das paixões”. Mas nem sempre ele conseguiu serenar as suas. Diz a história que Leão era incapaz de conter seus instintos mais primitivos ao lidar com uma prima de primeiro grau, com quem acabou casando. Acusado de enriquecimento ilícito, usou uma justificativa à la João Alves: teria acertado duas vezes na loteria. Aí há mais uma convergência com a tarefa de FHC. Na atual circunstância, unir o centro é quase como acertar na loteria.
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