A coincidência
No início de fevereiro deste ano, cerca de uma semana após virem à luz informações sobre uma apuração interna da Receita Federal envolvendo Guiomar Mendes, mulher do ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, o atual presidente da corte, José Antonio Dias Toffoli, participou de um evento do sindicato dos auditores fiscais, em Brasília. Chamado ao palco para discursar, Toffoli indicou que haveria reação à iniciativa de funcionários do órgão de esquadrinhar as movimentações financeiras da mulher do colega, advogada em uma prestigiada banca. Àquela altura, o próprio Gilmar Mendes havia estrilado contra a medida. Chegou a comparar a Receita Federal à Gestapo, a polícia política de Adolf Hitler. Ao dar a senha da reação que estava por vir, Dias Toffoli afirmou no discurso que era preciso “delimitar” a maneira como o Fisco vinha compartilhando informações fiscais com outros órgãos de controle e de investigação, como o Ministério Público. Não demorou para que surgisse a notícia de que, a exemplo da mulher de Gilmar Mendes, a mulher do próprio Toffoli, a também advogada Roberta Maria Rangel, havia entrado no mesmo radar da Receita. Nesse caso, na mira dos auditores estava não a advogada pessoa física, mas seu escritório, sediado em Brasília.
Dias Toffoli, então, escalou alguns tons em sua reação. Chegou a pautar, na corte, o julgamento de um recurso extraordinário para delimitar até que ponto órgãos como a própria Receita podem repassar informações fiscais para procuradores e outros investigadores. O processo foi pautado para 21 de março. Depois, voltou atrás e remarcou o julgamento para novembro. Nesta semana, o presidente do Supremo tomou uma decisão relacionada ao tema que acabou por abrir um novo round no embate com órgãos que vêm contribuindo em grandes investigações de combate à corrupção e lavagem de dinheiro. Em pleno recesso do Judiciário, e sozinho, Toffoli decidiu não esperar novembro e, a partir de um pedido formulado pelo senador Flávio Bolsonaro, expediu uma ordem que não apenas suspende as investigações em curso sobre o filho do presidente da República como paralisa todos os inquéritos e processos em andamento no país que tenham se utilizado, sem prévia autorização judicial, de informações repassadas por órgãos como a Receita Federal e o Coaf, o Conselho de Controle de Atividades Financeiras, órgão de inteligência que monitora transações suspeitas de lavagem de dinheiro. Ou seja, em só uma canetada, Toffoli fez cumprir o que anunciara no discurso de fevereiro, ao discursar no sindicato dos auditores – e, além de atender o pedido de Flávio Bolsonaro, cujas investigações foram iniciadas a partir de um relatório do Coaf, estancou na origem o incômodo causado desde que surgiram as notícias sobre o pente fino que a Receita começou a fazer nas operações financeiras do escritório de sua mulher e nas contas da mulher de seu colega Gilmar Mendes. Ou seja: a decisão foi um atalho para interromper, ao menos por ora, a atividade do que Gilmar chamara de Gestapo.
Um dado inédito, e que Crusoé revela nesta reportagem, é que três semanas antes de Dias Toffoli expedir a decisão, a Receita Federal começou a pedir explicações a algumas das empresas que contrataram os serviços do escritório de sua mulher, Roberta Rangel. Ou seja: a apuração iniciada meses atrás, e que havia irritado enormemente o presidente do Supremo, tinha acabado de dar mais um passo. Os pedidos de informação expedidos pela Receita aos clientes de Roberta Rangel são uma fase de um procedimento que poderia, em última instância, desaguar em comunicação ao Ministério Público Federal para a abertura de investigação. Agora, como os auditores não podem mais repassar informações detalhadas aos órgãos de controle sem que haja uma ordem expressa de um juiz, essa possibilidade já não existe mais. O canal, ao menos por enquanto, está fechado.
O simples envio dos pedidos de explicação aos clientes do escritório não significa, evidentemente, que já exista uma conclusão ou que os auditores tenham encontrado indícios de crime. A medida, comum aos contribuintes mortais, aqueles que não ocupam altos cargos nem têm canetas poderosas, pode ou não resultar em fiscalização da Receita – um tipo de ação que, no caso concreto, seria destinada a averiguar mais detidamente se há problemas fiscais na operação da banca de advocacia. Se, no curso do trabalho, os fiscais encontrassem pistas de possíveis problemas, eles produziriam uma representação para fins penais a ser endereçada ao Ministério Público, que poderia abrir uma investigação. Agora, com a decisão de Toffoli, isso não será mais possível. Ao menos até novembro, quando o plenário do Supremo deverá decidir se chancela a decisão tomada nesta semana pelo presidente da corte.
Crusoé pediu oficialmente à Receita Federal informações sobre o caso – em especial, sobre o avanço da apuração envolvendo o escritório da mulher do presidente do Supremo. O órgão limitou-se a responder que não pode comentar o assunto. “Em razão do sigilo fiscal, previsto no Código Tributário Nacional, a Receita não pode comentar casos de contribuintes específicos”, respondeu a Receita, em nota enviada na tarde desta quinta-feira, 18. Também procurado, o escritório de Roberta Rangel não respondeu ao pedido da revista para que se manifestasse. A assessoria de Dias Toffoli, por sua vez, informou que não havia conseguido contatá-lo para falar sobre o assunto. Crusoé fez duas perguntas ao presidente do Supremo. A primeira, se ao dar a decisão ordenando a suspensão das investigações baseadas dados da Receita, do Banco Central e do Coaf ele tinha conhecimento de que o Fisco havia pedido informações aos clientes do escritório de sua mulher. E a segunda, se a decisão guardava alguma relação com a apuração dos auditores. Na quarta-feira, 17, em entrevista à Folha de S.Paulo, Toffoli respondeu à saraivada de críticas que passou a receber após a decisão e repisou o argumento central de seu despacho – o de que órgãos como a Receita e o Coaf só podem passar informações adiante com a intermediação de um juiz. “Só não quer o controle do Judiciário quem quer estado fascista e policialesco, que escolhe suas vítimas. Ao invés de Justiça, querem vingança”, disse. “Qual seria a razão de não pedir permissão ao Judiciário? Fazer investigações de gaveta? Prêt-à-porter contra quem desejar conforme conveniências?”, indagou.
A história de Dias Toffoli está ligada à do escritório de sua mulher, Roberta Rangel. A banca foi aberta pelos dois ainda nos tempos em que ele trabalhava para o PT. Depois que passou a integrar o governo, no primeiro mandato do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ele deixou a sociedade. Roberta prosseguiu com o negócio. Hoje, o escritório cuida de centenas de processos em Brasília, muitos deles no Superior Tribunal de Justiça e no Tribunal Superior Eleitoral. Algumas das causas são milionárias. Atualmente, segundo os registros na OAB, o sócio de Roberta é um advogado que já havia trabalhado com o próprio Toffoli. Há outros laços, financeiros e mais recentes. Como mostrou Crusoé na edição de número 13, em julho do ano passado, por um período, quando já era ministro do Supremo, Toffoli recebia mensalmente 100 mil reais de Roberta Rangel. Metade do valor era destinada, em seguida, para a conta de Monica Ortega, ex-mulher do ministro. Outra parte era usada para pagar despesas correntes, como faturas de cartão. As operações se davam em uma agência do Banco Mercantil em Brasília. A reportagem de Crusoé revelou ainda que, em 2015, a área técnica do banco identificou indícios de lavagem de dinheiro nas transações. Normalmente, em casos assim, o banco teria a obrigação de reportar o caso ao Coaf – um dos órgãos agora alcançados pela decisão do presidente do Supremo. Mas não foi o que ocorreu. Após uma ordem da diretoria do Mercantil, os relatos com os indícios de irregularidades foram parar na gaveta. Assim como agora, Toffoli não se manifestou sobre os pagamentos mensais. Nem à altura da publicação nem nos quase doze meses que se passaram desde então.
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