Foto: Adriano Machado/CrusoéLula: grande pressa e indisposição para lidar com limites

A egocracia de Lula

A força oculta que move o presidente tem mais relação com sua trajetória pessoal do que com o futuro do país
10.02.23

Um dos elementos obrigatórios de qualquer bom enredo é o fato ou circunstância que força o personagem a entrar na trama. O crime chocante que exige ser desvendado ou o drama familiar que suga como um buraco negro todo o seu entorno para uma catarse coletiva inevitável, o algo oculto que move o personagem até o derradeiro evento que desencadeará sobre ele as consequências boas ou más que lhes estão reservadas. 

Na política, a vida também imita a arte. E essa introdução é um convite para analisar Lula como um personagem ou como “uma ideia”, como ele mesmo se intitulou no discurso que fez pouco antes de ser preso, em 2018. Mas, nem de longe pode-se dizer que este é um exercício apenas metafórico. Nada disso, tem-se à frente um objetivo prático, isto é, entender por que Lula se comporta da maneira que vem agindo e, claro, suas consequências para o país. 

Lula demonstra ter grande pressa e não saber lidar com limites institucionais. Está pressionado pelo curto prazo autoimposto – de apenas quatro anos se não tentar a reeleição –, que vem do objetivo latente, mas bem visível, de querer superar o governo de Jair Bolsonaro em todos os aspectos desde o início, de onde deriva sua pouca paciência para negociar a construção de uma base, de recorrer ao STF para resolver o problema do Orçamento e dos recursos para o Bolsa Família e de privilegiar o incentivo ao consumo e a energizar a economia com obras públicas. 

Todas essas características, no entanto, contrariam a imagem de articulador e conciliador de diversos setores e grupos nacionais pela qual ficou conhecido e, na verdade, atribui a ele o papel perigoso de quem não reconhece o papel do tempo no seu governo, aquele elemento que impede que todas as coisas aconteçam de uma vez e que, como alertou Ulysses Guimarães, “não perdoa quem não sabe trabalhar com ele”.

A “falsa celeuma”, como disse recentemente o economista André Perfeito, entre Lula e o Banco Central ilustra o perigo. Trata-se de uma disputa “fake” porque o BCB irá reduzir a taxa Selic de qualquer forma, considerando o cenário doméstico e mundial, e porque Lula não empregará capital político para retirar autonomia da autoridade monetária em razão de outras prioridades que tem pela frente. Sem saber esperar, no entanto, e vociferar toda sua impaciência com Campos Neto, que se tornou “aquele cidadão”, Lula obtém o oposto do que está pedindo: nos últimos dias, a percepção de risco fiscal piorou, a curva longa de juros subiu e o dólar se valorizou no Brasil enquanto ficou mais fraco em outros países.

Aliás, a percepção de que Lula está jogando contra seus próprios interesses vem desde antes do governo ser inaugurado oficialmente. O primeiro a notar foi o senador Renan Calheiros (MDB/AL), que classificou como “barbeiragem” a articulação para obter a PEC da Transição que, segundo ele, acabou com a possibilidade de construir uma articulação para eleger outro presidente da Câmara que não fosse Arthur Lira. Além disso, a “violência” política empregada pelo STF para resolver o Orçamento e garantir recursos fora do teto de gastos para o Bolsa Família reforçou o corporativismo entre parlamentares sobre a necessidade de se protegerem de excessos do Judiciário e do Executivo, como se viu nos discursos de eleição para as presidências das Casas.   

O tumulto que cada fala traz tem atrapalhado o serviço do ministro Fernando Haddad, da Fazenda, que tenta se equilibrar entre falar o que os setores econômicos querem ouvir sem desautorizar, no entanto, seu padrinho político, contra o qual parece não ter nenhuma ingerência. Aliás, a nomeação de três políticos com brilho e ambições próprias – além de Haddad, Geraldo Alckmin e Simone Tebet – para a três pastas econômicas traz mais incentivos para uma concorrência interna do que para a colaboração, dentro da velha tática “dividir para dominar”, parece ter sido feita para garantir que Lula será o árbitro final de qualquer disputa nessa matéria. 

Para o país, não se trata de um bom presságio. Lula não goza do estoque de confiança de outros momentos para fazer guinadas (começa com uma avaliação ruim/péssimo de 35%), há oposição setorial forte em temas essenciais e memória fresca entre empresários do baque da falência da Nova Matriz Econômica. Ao contrário do que tem dito em relação ao seu direito de tocar a economia como quiser, o Brasil é uma democracia de natureza consensual, onde soluções precisam ser pactuadas entre vários grupos, e não majoritária, onde o vencedor leva tudo. Querendo ou não, o arcabouço institucional contra o qual Lula se volta foi o que permitiu ao país passar com certa solidez pela pandemia e pelo surto populista/eleitoral de Bolsonaro. A discussão pela substituição/evolução das leis de condução orçamentária não está madura e nem sequer há proposta alternativa sobre a mesa. 

A tentativa e de se livrar de amarras institucionais, controlar o tempo da política e ter a última palavra nas decisões políticas mais importantes busca concentrar poder de forma agressiva e intensa. A pressa e a pressão é de quem parece desejar que todas as mudanças caibam dentro de um ciclo de quatro anos, de um pedaço de vida, sugerindo que a força oculta que o move tem mais relação com sua trajetória pessoal do que com o futuro do país. Tudo leva a crer que a força que que move Lula é o próprio Lula, a construção de uma “egocracia” na qual o país, hoje, é no máximo um palco.

Lula tem que tomar mais cuidado com o tempo, sob pena de atribular inutilmente a agenda do país, abortar resultados em gestação e retardar a colheita de frutos perto de estarem maduros. Sem resultado para a população, não há roteiro que salve Lula. Nesse sentido, Lula precisa reconhecer o que foi feito antes do seu retorno, dialogando com os marcos fiscais, a autonomia do BC, e outros eixos estruturantes, por exemplo, se relacionar com o Legislativo sem a lógica do cooptação, não reestartar o Brasil a partir do ponto de saída do PT do governo em 2016, e trabalhar com prazos mais longos e maturação de resultados fora de uma visão hegemônica e de aprimoramento da democracia, entendendo o óbvio ululante de que o país não nasceu com ele e nem vai acabar quando ele deixar o Planalto.

 

Leonardo Barreto é cientista político e diretor VectorRelgov.com.br

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
Mais notícias
Assine agora
TOPO