Foto: Rovena Rosa/Agência BrasilCracolândia: governo e prefeitura de São Paulo tentarão nova abordagem para lidar com o problema

Cracolândia, 33 anos: um problema sem volta?

Cidades estrangeiras que acabaram com centros de consumo a céu aberto equilibraram acolhimento aos usuários e ação policial
10.02.23

A primeira apreensão de drogas na Cracolândia de São Paulo – uma área de consumo de drogas a céu aberto, que degrada diversos quarteirões de uma das regiões mais antigas do centro da maior cidade do hemisfério Sul — completa 33 anos em junho deste ano. Desde então, as cenas de usuários de droga aglomerados em meio ao lixo, destruindo aos poucos a própria vida e explorados pelos traficantes se incrustaram no imaginário da cidade. Assim como uma pergunta: é possível mudar essa situação?

Governadores e prefeitos que garantiram o fim do consumo de drogas viram seus governos acabarem antes. Em maio de 2017, depois de uma grande operação policial na região, o então prefeito João Doria (PSDB) foi aos microfones afirmar que “a Cracolândia aqui acabou, não vai voltar mais. A partir de hoje, isso é passado”. Doria decidiu deixar a política em 2022 — mas a Cracolândia segue ativa.

No final de janeiro, Tarcísio de Freitas — o 11º governador desde que a primeira pedra de crack foi apreendida — apresentou um novo plano de ação para a Cracolândia ao lado de Ricardo Nunes (MDB) — o 10º prefeito de São Paulo, segundo o mesmo parâmetro. Eles esperam não ser engolidos pela mesma sina, apostando na reformulação do sistema para tratamento de álcool e outras drogas como um hub que, segundo o governo, será “uma porta de entrada para o atendimento aos usuários de substâncias psicoativas e suas famílias”. A execução ficou no colo do vice-governador, Felício Ramuth (PSD).

O plano do poder público é de ampliar a cesta de ofertas para o usuário de drogas: com a abertura de novas vagas em centros de tratamento, com o pagamento de auxílios para quem se mantenha fora das drogas e mesmo a possibilidade de uma “Justiça Terapêutica”, que permitirá ao usuário que também cometeu crimes cumprir parte da pena em uma unidade de tratamento. A proposta ainda precisa de regulamentação, mas seria voltada aos 52% dos frequentadores da Cracolândia que já estiveram presos, assim como aos 15% que ainda têm pendências judiciais.

Além dos braços abertos, há a ação ostensiva: o governo deve ampliar o efetivo de policiais militares na região, além de promover a licitação de cerca de 500 câmeras de vigilância na região da Boca do Lixo, área no bairro da Luz onde se concentra o consumo de drogas. Tarcísio fala “no uso da tecnologia” para vencer a Cracolândia, o que se traduz em câmeras com reconhecimento facial para auxiliar no reconhecimento de moradores de rua, usuários e traficantes na região.

O governador Tarcísio Freitas (à esq.), ao apresentar plano para Cracolândia: execução ficará a cargo do vice, Felício Ramuth
O governador não negou que a internação compulsória estaria nessa cesta, como uma “última opção, mas que não pode ser descartada”. A proposta é polêmica, mas Dartiu Xavier da Silveira, especialista em dependência química pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), concorda. “Internação compulsória não é a saída”, ele explica. “Mas é um recurso  excepcional, a ser usado em menos de 5% dos casos, quando há distúrbios mentais graves, como risco de suicídio.”

Fora que é bem mais cara. “Uma internação é 100 vezes mais cara que um atendimento no Centro de Atenção Psicossocial”, explica.

Quem são os usuários — Uma das pesquisas mais amplas na Cracolândia paulista mostra que a região é mais diversa do que parece: o Levantamento de Cenas de Uso em Capitais (Lecuca), comandado pela própria Unifesp. Ela revela que, em 2021, 57% dos entrevistados frequentavam a área de consumo havia  mais de cinco anos; 66% moravam nas ruas, mas 31% tinham atividade remunerada, sendo padeiros, mecânicos, artesãos ou porteiros, entre vários outros empregos. Quase três em cada quatro eram homens, em uma proporção que, no entanto, vem diminuindo ano após ano.

O consumo, que era condensado em um trecho da Rua Helvétia, próximo à estação Júlio Prestes, acabou se espalhando após operações policiais na região, como a de 2017.

Após aquela operação, as cenas de consumo se espalharam por mais áreas no centro da cidade e se moveram para perto de áreas residenciais e de comércio, como a rua Santa Ifigênia, famosa pelo seu comércio de eletrônicos. Pesquisadores do Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade da Universidade de São Paulo (Labcidade) dizem que a população na área não aumenta, mas se espalha cada vez mais graças a medidas como a “Operação Caronte”, que força a movimentação constante dos usuários de drogas.

Eles são críticos à atuação da forças públicas. “Para além do cumprimento semanal de mandados de prisão, a Polícia Militar a Guarda Civil Metropolitana apenas repetem o roteiro de intimidação e violência, com uso de cassetetes, spray de pimenta e bombas de gás, para evitar e dispersar as concentrações de pessoas em situação de rua, mantendo-as  circulando por diversos pontos do centro da cidade”, escreveram sete pesquisadores em um artigo recente. As ações acabariam por multiplicar os problemas. “Hoje são no mínimo 16 Cracolândias na área central de São Paulo”, concluem.

Experiência internacional — Ao anunciar seus planos, no último dia 24, Tarcísio de Freitas disse que a cidade tinha a capacidade de repetir outras metrópoles que venceram suas cracolândias.

Cerca de 150 pessoas morriam por ano na Taunusanlage em Frankfurt, na Alemanha; os suíços se viam às voltas com os usuários da Platspitz em Zurique, e mesmo frias cidades como Oslo tinham suas áreas abertas de consumo.

Todos venceram com um equilíbrio entre acolhimento aos usuários (que contaram até com salas para uso controlado das drogas) e ação policial eficiente, aponta Dartiu. “A abordagem eficaz se faz com o equilíbrio entre medicação e atendimento psicossocial”, ele pondera. O professor coordena um centro de atendimento a dependentes químicos há mais de três décadas, e diz que a ação policial brasileira não trará resultados à sociedade enquanto mantiver uma ação ostensiva de repressão.

“O caso brasileiro é complicado porque não se faz o que se faz fora do Brasil”, pondera o especialista. “Porque se vê o usuário como um traficante, ou a medicina o vê como um usuário, o que nem sempre é o caso. Ali há também  moradores de rua ou pessoas sem proteção, verdadeiros excluídos sociais.”

O caso brasileiro, rememora o professor, lembra mais a experiência de  Nova York, onde a famosa política de “tolerância zero” adotada pelo então prefeito Rudy Giuliani acabou com as cracolândias, mas não com o consumo dentro das residências. Aos 33 anos, a Cracolândia pode, sim, ter solução — contanto que  se ande na direção correta.

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  1. Sem a internação compulsória até o sujeito desintoxicar e poder ter sanidade suficiente para optar por um tratamento adequado na adiantará. As operações policiais até hoje são do tipo "espanta barata", só serve para espalhar os viciados, muitos verdadeiros zumbis. A turma dos "direito dos mano" mais atrapalha do que ajuda.

  2. O manual como acabar com cracolândias existe, basta se espelhar nos casos de sucesso europeus. O que é necessário é que essa política de ação seja de (e do) estado, não sendo revertida ao mudar o partido no poder ou após o primeiro revés midiático.

  3. A melhor arma nessa guerra seria diminuir drasticamente o consumo, o quê não parece interessar a muita gente, inclusive alguns partidos políticos

  4. Cada país tem uma solução própria, atribuida à sua realidade e nós temos que encontrar a nossa, tendo-se em conta ainda que o problema, se combatido com eficiência, não será resolvido mas será no máximo diminuido e controlado.

  5. Cada governante adota uma postura. Não há uma política pública que tenha continuidade e vá se aperfeiçoando ou mesmo mudando conforme os resultados. A verdade é que, até agora, nenhum prefeito ou governador realmente se empenhou em resolver o problema ou dispensar recursos para tal. A degradação de áreas da cidade, dos imóveis dos moradores, dos passantes nessas regiões parece não importar.

  6. Um problema que não pode ser tratado com viés politiqueiro. Assunto complexo para ficar no nível populista / paternalista,

  7. Dificilmente alguém inebriado pela droga ou não pensando em outra coisa além de como conseguir a próxima dose irá procurar tratamento. Em algum momento a compulsoriedade terá que ser adotada para limpar a mente do viciado e faze-lo raciocinar normalmente.

  8. O tolerância zero do Rudolph Giuliani não acabou com os consumos nas residências? Que frase mais sem pé nem cabeça. É evidente que é impossível acabar com o consumo em casa, onde cada um é dono do seu próprio nariz. Já as ruas são públicas, sujeitas à normas e às leis da sociedade. MS

    1. Concordo plenamente com seu comentário!

    2. O comentário é válido... ao tirar o usuário da rua vc esconde o problema e não resolve! Não é só caso de polícia e sim de medicina tbm

    3. Quiseram dizer que o consumo da droga em NY não acabou, só mudou de endereço. O texto é bem claro, não precisa polemizar.

  9. Todo instrumento que diminua o tamanho desse problema, até o zero relativo, deve ser lançado mão. Muito remédio amargo tem que ser aplicado.

  10. Tema extremamente complexo para ser resolvido em pouco tempo. Por mais boa vontade e força política que tenha, o governador Tarcisio não conseguirá reverter o quadro completamente durante o seu mandato. Resta saber se o seu substituto prosseguirá com as estratégias e planos concebidos por sua equipe de governo. Para resultados satisfatórios uma plêiade de práticas deveriam ser adotadas, tendo como base as experiências bem sucedidas de outras cidades em todo o mundo. A iniciativa é alvissareira!

  11. Qual é a direção correta??? Por que não escutam o ponto de vista dos moradores que tem sua vida infernizada diariamente por esses zumbis e seus traficantes???? As propriedades perderam valor e seus moradores não tem mais para onde ir…..

    1. Em que os moradores - leigos na área - poderiam ajudar que pessoal técnico e especializado na matéria não possa fazer? Entendo o desespero dos moradores por terem que conviver com problema tão impactante em suas vidas, diariamente, mas a solução está nas mãos do poder público, de médicos, psicólogos e assistentes sociais.

  12. Exemplos vindo de países mais equilibrados economicamente e socialmente já foram difíceis para solucionar, imagina se chegaremos em bons resultados com a mesma destreza? Levará muito tempo, infelizmente. Acho que além das políticas de saúde e acolhimento, deveria haver oportunidades de trabalho, mas como vemos em outras situações (como o garimpo ilegal) falta espaço para essa gente descobrir formas de vida mais dignas e que mereçam um esforço.

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