Museu Nacional de Belas Artes do Rio de JaneiroBatalha de Guararapes, em quadro de Victor Meirelles: Estado português não teve papel decisivo

A iniciativa privada e o Estado

Nas capitanias hereditárias e nas batalhas contra os holandeses, foi a sociedade que tomou a dianteira
16.05.24

Foi a iniciativa privada que primeiro explorou o território do nosso país. O Estado veio depois. O livro História da Riqueza no Brasil, de Jorge Caldeira, trata muito bem dessa questão. Não é de estranhar que, numa calamidade como a que aconteceu no Rio Grande do Sul, a iniciativa privada e a sociedade civil tomem a dianteira e o Estado venha depois, tendo um papel menos relevante do que se poderia esperar.

E isso começou antes das capitanias hereditárias, ainda no começo da colonização. Segundo Caldeira, apesar da diversidade de povos existentes no território que viria a formar o Brasil, os “tupi-guarani exibiam um nível comum de conhecimentos, domínio tecnológico e costumes”. Mas eles não tinham o conhecimento da metalurgia. O contato com os europeus — especialmente os portugueses e franceses — fez uma grande diferença em como eles exploravam o território. Com instrumentos de metal recebidos dos europeus — trocados por pau brasil, por exemplo — puderam ampliar o domínio territorial. Isso aconteceu através dos casamentos por alianças, que introduziam homens estrangeiros em famílias indígenas, tendo como objetivo último o comércio.

Não é exagero dizer que o comércio é atividade fundadora do Brasil. E também a religião. Ainda no livro de Caldeira, é bem descrito como o descobrimento do Brasil foi resultado final da atividade das cruzadas. O objetivo era dominar a Terra Santa, mas as navegações terminaram por descobrir um novo território — nos dois casos foi possível ampliar o espaço geográfico da cristandade.

Comércio e religião são duas atividades que precedem o Estado, são expressões da sociedade civil organizada. Curiosamente, são duas coisas que a esquerda marxista ataca nos princípios — uma vez que é contra o livre mercado e nega a metafísica, colocando a religião como instrumento de opressão.

Com as capitanias hereditárias, o comércio era fundamental. Ora, as capitanias eram empreendimentos privados em partes do território do Brasil. Tinham seus donos e davam lucro tanto para seus proprietários e para a coroa, em forma de impostos.

Na verdade, as capitanias tinham um grau de autonomia muito grande da coroa portuguesa. O livro de Caldeira traz dados inéditos sobre a vitalidade da economia colonial, dados que não haviam ainda sido compilados em sua totalidade, e que mostram um cenário diferente do que os livros de história costumavam mostrar. A impressão que temos lendo esses livros é que o Estado português mandava de fato na vida da colônia. Nada mais distante da realidade.

Os donatários das capitanias eram de fato donos daquelas terras — se bem que Duarte Coelho, donatário da Capitania de Pernambuco, reclamava em suas cartas ao rei de Portugal que teve que lutar por cada pedaço de terra que recebeu — lutar contra as tribos hostis, diga-se. Os senhores de engenhos eram verdadeiros autocratas, mandavam e desmandavam. E a capitania de São Paulo tinha tanta autonomia quanto um Estado separado. Isso só mudou com a descoberta do ouro em Minas Gerais.

A guerra contra os holandeses — que tomaram parte do território do que hoje é o Nordeste — foi outro belo exemplo da sociedade civil organizada. O Estado português não teve um papel decisivo na Batalha dos Guararapes, e sim o povo pernambucano, com negros, índios e portugueses. As outras capitanias também não ajudaram os pernambucanos. Tiveram que lutar sós, e venceram. E ali nasceu o Exército brasileiro.

Elias Canetti no clássico Massa e Poder fala das massas abertas e massas fechadas. As religiões, segundo ele, são massas abertas que se institucionalizam e se tornam fechadas. O Estado também. Numa catástrofe, as instituições podem se tornar disfuncionais, e as massas abertas (a sociedade civil) precisa agir. Foi o que aconteceu no Rio Grande do Sul.

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  1. Bom texto, discordo em relação às religiões, são sim, instrumentos de poder e controle das massas (todas elas!). Religião e poder sempre estiveram lado a lado e pra lá do blá blá blá teológico da fé, o objetivo último das religiões é poder, conquistar fiéis submissos, como um grande War, deixando todo o mapa com sua cor. Nesse ponto, as alianças com o estado são muito bem vindas, ou com qualquer ator que seja útil e conveniente. A salvação da alma é só um ótimo pretexto para os gestores da fé.

  2. Uma nação não se constrói de cima para baixo. A mobilização da sociedade em momentos de catástrofe é um importante lembrete disso

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