Jeep Clube do BrasilJipeiros levam comida para gaúchos afetados pelas enchentes: "civil salva civil"

O heroísmo brasileiro

Um estado inteiro ficou debaixo d’água. Um país inteiro se mobilizou para ajudar
16.05.24

Alguns eventos são tão avassaladores e mudam tão radicalmente a maneira de vermos o mundo que, mesmo antes de acabarem, já são considerados históricos. Foi assim com a Covid, que deixou 700 mil mortos somente no Brasil e inoculou em todos o medo das pandemias. A enchente do Rio Grande do Sul segue no mesmo caminho. Primeiro, porque alterou a percepção de risco que os brasileiros têm de eventos climáticos extremos. Segundo, pelo seu gigantismo. Um estado inteiro ficou debaixo d’água. Um país inteiro se mobilizou para ajudar.

Sem serem solicitados e sem muita organização prévia, jipeiros de todo o país pegaram as estradas rumo ao sul após ler as primeiras notícias de enchentes. Ao entrar nas cidades afetadas, eles localizaram os centros de defesa civil e os espaços que a população, sem ajuda do poder público, organizou para receber doações e preparar marmitas. Então, os jipeiros passaram a distribuir alimentos, remédios e rações para animais nas áreas afetadas, onde apenas veículos com tração 4X4 conseguem trafegar. “A defesa civil não consegue chegar nesses lugares. Por isso, quem está fazendo esse serviço são os jipeiros. Tem carro entrando com 1,5 metro de água, cobrindo até o capô do jipe”, diz Luiz Castro, que é dono de um posto de gasolina em São Paulo e é presidente do Jeep Club do Brasil. “Não existe uma coordenação central, todo mundo vai ajudando como pode. O poder público está até meio sem controle. Quando a gente fala isso, parece que é uma bagunça, mas a coisa está funcionando bem. A população, de forma pulverizada, está fazendo um trabalho maravilhoso.”

A necessidade é tão grande que fez até com que os diversos clubes de jipeiros do Brasil começassem a se organizar, pela primeira vez, para melhor atender às vítimas. “Muitos jipeiros foram ajudar, voltaram para suas casas e estão se preparando para ir de novo. A dimensão do problema é muito grande. Mais de 300 cidades foram alagadas e a água ainda não baixou. Essa tragédia não tem a mesma proporção de nada que a gente viu até hoje”, diz Castro.

Donos de barcos e jet-skis também se prontificaram. No início de maio, Tiago Maia, que trabalha na indústria de entretenimento nacional, subiu em uma caminhonete com um amigo e os dois rumaram para o sul com um jet-ski. Em Porto Alegre, eles se encontraram com conhecidos que já tinham levado barcos. A partir de bases em dois bairros, no Gasômetro e em Humaitá, eles resgatam pessoas e animais. Levaram alimentos e garrafas de água aos necessitados. “Foi uma experiência incrível. Depois das missões, nós éramos acolhidos por voluntários que nos davam comida quentinha e até atendimento psicológico. Tinha bastante gaúcho, muita gente de Santa Catarina e de São Paulo. Encontrei pessoas de Minas, Pernambuco e Mato Grosso. O Brasil inteiro está mobilizado”, diz Maia.

Outra coisa que o impressionou foi a falta de segurança. “O que está rolando no Rio Grande do Sul é uma guerra. Eu achei que a gente fosse chegar lá e encontrar as Forças Armadas patrulhando as cidades, mas não vi ninguém fazendo isso. Sei que a Marinha enviou um navio. Vi ele atracado no rio Guaíba. Mas não vi eles na água quando estavam ocorrendo salvamentos no dia 11 de maio. Em alguns bairros, a gente não pôde entrar para resgatar pessoas, porque ladrões poderiam roubar os nossos barcos e jet-skis. Em outros, só conseguimos entrar com escolta armada. Eram bombeiros e policiais de outras cidades e estados que nos ajudavam. É uma terra de ninguém. Quem estava lá como voluntário é porque queria muito ajudar.”

 

Arquivo pessoalArquivo pessoalTiago Maia come comida feita por voluntários, em Porto Alegre
 

A intensa mobilização da sociedade civil brasileira acontece, em grande parte, porque a tecnologia disponível permite uma ação muito mais eficiente. Aplicativos de mensagens facilitam a coordenação entre jipeiros, voluntários em centros de distribuição e os que levaram barcos e jet-skis. Em muitas cidades, pessoas que estavam cercadas pelas águas pediram socorro pelo celular. Para facilitar, as operadoras liberaram o sinal de internet para os moradores do estado. Doações foram feitas por pix diretamente para as organizações envolvidas na ajuda aos gaúchos. O site Vakinha, criado no Rio Grande do Sul, montou o que chamou de “a maior campanha solidária do RS” e arrecadou, até esta semana 73 milhões de reais de reais, doados por 1,2 milhão de pessoas. Até então, a maior campanha, do ano passado, tinha arrecadado 3,2 milhões de reais. Diversos outros sites de ajuda financeira também criaram campanhas específicas.

Outro fator importante que explica essa mobilização toda é que, como o desastre atingiu a todos, independente de classe social, partido ou cor, ninguém hesitou em prestar socorro. “A solidariedade é óbvia quando todo mundo é atingido. No Rio Grande do Sul, todos foram afetados. Então, todos se compadeceram. Se as inundações tivessem afetado apenas um grupo de políticos corruptos, por exemplo, ninguém iria ajudar”, diz o antropólogo Roberto DaMatta.

Tentativas de dividir a população, seja as vítimas ou aqueles que as estavam ajudando, foram rechaçadas. A ministra Anielle Franco, da Igualdade Racial, pediu que quilombolas e ciganos fossem priorizados. A ideia foi ignorada por sua inviabilidade e por criar fissuras desnecessárias em uma população carente de ajuda estatal. Na quarta, 15, Lula e Janja colocaram de novo a carta racial na mesa. “É impressionante, eu não tinha noção que no Rio Grande do Sul tinha tanta gente negra. E no ‘Fantástico’ apareceu muita gente. Eu falei: ‘não é possível’. Aí a Janja me falou: ‘é porque são os mais pobres, é porque moram nos lugares mais arriscados de ser vítima dessas coisas’”.

Outros criticaram a ajuda porque vinha de alguém da esquerda ou da direita. Sobre essa politização da tragédia, a humorista Luana Zucoloto publicou um ótimo vídeo nas redes sociais. “A sua militância hipócrita não vai tirar ninguém da água (…). A primeira coisa que não se deve fazer é criticar o coleguinha que está tentando ajudar (…). Você acha que a pessoa que está se afogando lá quer saber se quem está salvando ela é de direita, de esquerda, é preto ou branco? Então deixa eu te contar uma coisa. Na hora de somar dinheiro para fazer campanha eleitoral, todo mundo que se odeia, se une. Então cuidado para não ficar levantando bandeira de falso moralismo para político de estimação”, disse Luana (assista abaixo).

 

 

A maior parte das críticas foi reservada ao Estado, encarnado nos governos federal, estadual, municipal e nas Forças Armadas (leia o artigo de Orlando Tosetto Jr. em Crusoé). O desastre ambiental evidenciou a incapacidade dos políticos com cargos públicos de preparar e ajudar a população para lidar com eventos climáticos extremos, no momento em que a frase mais ouvida nas áreas alagadas era “civil salva civil” (sobre a força da sociedade, leia o artigo de Alexandre Borges nesta edição da Crusoé).

Com os egos feridos e temorosos de um aumento na reprovação, Lula e seus ministros partiram para atacar os autores de supostas “fake news” contra o governo, as quais seriam em grande parte desferidas por pessoas de direita ou bolsonaristas. Entre os alvos do ministro Paulo Pimenta, ex-Secom, e do advogado-geral da União, Jorge Messias, estavam cidadãos que disseram nas redes sociais que a sociedade civil estava fazendo mais do que o governo. O esforço para mostrar serviço ainda resultou na criação de um 39º ministério de nome quilométrico, a Secretaria Extraordinária da Presidência da República para o Apoio à Reconstrução do Rio Grande do Sul, que será comandada por Pimenta.

É uma discussão complicada, que não tem uma resposta fácil. “O tom geral das críticas às fake news é de que os bolsonaristas estão apostando na desinformação, e que o mecanismo que eles usam para fazer isso é falar mal do Estado”, diz Matias Spektor, professor da Fundação Getúlio Vargas, em São Paulo. Mas talvez a questão não seja que o bolsonarismo esteja tentando pautar a população, e sim o contrário. Não podemos descartar a possibilidade de que já exista um consenso social grande em partes da nossa sociedade de que de fato o Estado não entrega o que promete. Talvez, de fato, a população só possa confiar em si mesma, nas suas igrejas, nas suas famílias, e não em instituições públicas. Então, não é o bolsonarismo que pauta essa crítica ao Estado, mas a sociedade que demanda esse tipo de mensagem de seus representantes.”

Após pesquisar sobre como a população de vários países vê as mudanças climáticas, Spektor afirma que a reação a grandes tragédias ocorre em duas fases. Primeiro, há um aumento do “capital social”, quando as pessoas se unem em associações informais para lidar com os problemas imediatos. “A literatura científica, contudo, é muito cética em relação ao que ocorre no momento seguinte. Isso porque o capital social depois começa a ser erodido quando tem início uma disputa pelos recursos que chegam”, diz Spektor.

A solidariedade, além disso, também não é um sentimento que dura para sempre. “Normalmente, as pessoas não conhecem os seus vizinhos e só ajudam as outras por meio de igrejas, organizações, ONGs. Quando tragédias como essa ocorrem, é comum sentir esse impulso para ajudar o outro”, diz o historiador e sociólogo Wesley Santana, da Universidade Presbiteriana Mackenzie. “Mas, depois de um tempo, esse sentimento vai embora, e as pessoas passam a se preocupar com as suas próprias vidas, com o trabalho, com a família. Pode até parecer cruel, mas solidariedade não é uma coisa contínua, que acontece todo dia.”

Que a sociedade brasileira possa ajudar o Rio Grande do Sul.

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  1. O artigo realmente é muito bom e eloquente. Entretanto, esse heroísmo também tem muito o reflexo da inanição do Governo Federal, dono do cofre. Se me permitem uma sugestão de pauta: analisem as promessas feitas nas últimas tragédias(Petrópolis , Teresópolis e região, São Sebastião e outras recentes. Obras paralisadas pelo MP , obras inacabadas, apartamentos e casas com previsão de entrega em 2025 e por aí vai. Esse mesmo heroísmo tem que se manifestar nas urnas.

  2. Estamos vivendo uma revolução silenciosa e pouca gente está percebendo, na qual a democracia representativa dará lugar à democracia direta e o poder do estado dará lugar à participação cidadã. Os meios para viabilizar essa transição: educação, tecnologia, ciência e humanidade.

  3. Excelentes considerações, Duda! Vocês conhecem o Plano Nacional de Adaptação à Mudança do Clima, desenvolvido em 2015 pelo Ministério do Meio Ambiente? São 370 pag. de um clima muito sério e abrangente, com análises e recomendações que não foram levadas em conta. https://antigo.mma.gov.br/clima/adaptacao/plano-nacional-de-adaptacao.html . Poderia ter evitado ou minimizado essa terrível catástrofe.

  4. A população fez tudo que fez sem nenhuma organização e conseguiu muito. Mas, de fato o 2º momento depende de muita organização, sobretudo, controle. O momento da reconstrução parece fadado a acontecer desvios de verbas, na mesma proporção que conhecemos através da LAVA-JATO. A cara do Lula nunca me foi confiável, e não acho que ele saiba agir como um verdadeiro líder. Ele só sabe fazer palanque. Agora chamou outro incompetente (Pimenta) par a comandar a tal Secretaria. Outro palanque!

    1. Essa Secretaria é mais um cabide de emprego desse governo incompetentemente e corrupto.

  5. Mesmo quem, como eu, que falo mal do comportamento médio brasileiro, me surpreendi com a resposta rápida da sociedade civil brasileira no episódio da tragédia no Rio Grande do Sul. Mas permaneço cético em relação aos governos, em seus três níveis. Nada, ou quase nada, fizeram, apesar dos contínuos avanços nos bolsos dos cidadãos.

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