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Os progressistas que acreditam em pecado original
Faca – Reflexões sobre um atentado, de Salman Rushdie: li, gostei, resenhei. Recomendo o livro enfaticamente a todos meus eventuais leitores. É um relato desassombrado – e surpreendentemente bem-humorado – do atentado a faca que Rushdie sofreu em agosto de 2022 e do difícil processo de recuperação pelo qual o escritor teve de passar (entre outras sequelas, o ataque cegou seu olho direito). Esqueçam as palhaçadas de Elon Musk: assombrado desde 1989 pela fatwa emitida pelo aiatolá Khomeini, o autor de Os versos satânicos é um verdadeiro herói da liberdade de expressão.
Meu tema hoje, porém, não é a literatura de Rushdie, o fundamentalismo islâmico ou a liberdade de expressão. Só comecei fazendo profusos elogios a Faca porque de outra forma pareceria mesquinho o que farei a partir daqui: vou criticar uma passagem muito específica do livro. Minha bronca é com uma única expressão utilizada por Rushdie.
É na página 196 da edição da Companhia das Letras. Rushdie está expondo sua preocupação com o revisionismo histórico professado por novos líderes populistas que vêm emergindo nos mais diversos lugares, de Nova Delhi (referência a Narendra Modi) à Florida (Donald Trump e Ron DeSantis). Ele diz então que é necessário se opor às “autoridades cínicas” que buscam apagar “os dois pecados originais dos Estados Unidos, a escravidão e a opressão e o genocídio dos habitantes originais do continente”.
“Pecado original”: é esta expressão que considero equivocada. E perigosa.
Deve ser óbvio que o escritor indiano-britânico-americano (sim, ele tem as três nacionalidades) emprega esses termos em sentido figurado. Como ateu, Rushdie não deve encontrar lugar para a noção de pecado em seu sistema moral. Mas não dá para falar em “pecado original” em uma discussão política sem carregar com a expressão uma série de implicações teológicas.
De forma tácita, no entanto, a ideia do pecado original sempre esteve no fundo do discurso político das forças que pretendem se opor ao populismo de direita nos Estados Unidos. Tome-se o muito discutido Projeto 1619, encampado pelo The New York Times. Os historiadores e jornalistas envolvidos na iniciativa não ambicionavam apenas recuperar histórias pouco conhecidas da escravidão nos Estados Unidos: o objetivo era recuar o marco fundador do país de 1776, ano da Declaração de Independência, para 1619, quando o primeiro navio trazendo escravos negros aportou em uma colônia britânica (a noção de que esse foi o evento inaugural da escravidão no que viria a ser os Estados Unidos é contestada por alguns historiadores, pois os espanhóis já haviam trazido escravos para a Flórida antes de 1619). A origem da nação não se encontraria mais nas elevadas aspirações da carta de independência – com sua afirmação da igualdade e do direito universal à “busca da felicidade” –, mas na submissão dos negros capturados na África.
Uma mácula consagrada como evento fundador não se torna indelével? Provavelmente sim. Eis o pecado original: o Jardim do Éden da América foi corrompido em 1619.
Sobre esses pressupostos, esgotam-se as possibilidades de compreender e combater o legado histórico da escravidão e do racismo: ele deve ser purgado em autos de fé virtuais e em cerimônias públicas de expiação. Foi o que se viu nas manifestações do Black Lives Matter, quando os brancos se ajoelhavam, simbolicamente pedindo perdão pela escravidão nos Estados Unidos. O princípio basilar de que nenhum cidadão pode ser julgado por crimes que seus ancestrais cometeram acabou espojado no meio fio. O mea culpa dos manifestantes brancos dizia respeito não ao direito universal, mas a uma esquisita igreja secular. Em Racismo Woke, John McWhorter aponta para esse caráter religioso da esquerda identitária e diz que “os eleitos” (apelido irônico que ele deu aos militantes dessas correntes) têm o seu próprio pecado original: o “privilégio branco”.
Não há reforma e nem sequer revolução que corrija o tal pecado histórico. Ele nunca será lavado da alma americana. Ou talvez venha a ser redimido no apocalipse, que bem pode ser o desejo inconsciente dos eleitos.
***
Na semana passada, falando da catástrofe climática que assolou meu estado natal, passei quase completamente ao largo das abjeções que circularam nas redes sobre o Rio Grande do Sul e seus habitantes. Queria apenas homenagear a força e a coragem dos que estão trabalhando para ajudar quem perdeu tudo nas enchentes.
Confesso, porém, que o tuíte de uma figura do baixo jornalismo governista ficou travado na minha garganta. Também lá se encontra uma variedade secular do fanatismo milenarista. O sujeitinho dizia que os gaúchos merecerão ser tragados pelas águas se continuarem elegendo neoliberais que defendem o “Estado mínimo”.
Os clichês econômicos são os mesmos de sempre. O que me horroriza é o fundo de ódio e santimônia que sustenta esse raciocínio. Não se trata de criticar e contestar uma ideia que se julgue perniciosa ou equivocada, mas sim de exorcizá-la. Pois muita gente que se imagina emancipada do obscurantismo religioso acredita, sim, em demônios – e o tal neoliberalismo talvez seja o próprio Satanás.
Acho que foi em 2010, quando um terremoto no Haiti matou 230 mil pessoas, que circulou pelas redes o vídeo em que um pastor americano proclamava que Deus causou a catástrofe para punir os haitianos pela prática do vodu. Na igreja progressista, também há falsos profetas dessa mesma estirpe.
Jerônimo Teixeira é jornalista e escritor
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Texto excelente. São assustadoras a ira e a santimônia dos "eleitos" inquisidores.
Excelente. Os defensores dessa ideia de pecado original, bem como aqueles que descendem e se sentem vítimas da diáspora africana, bem poderiam tentar reduzir essa dívida histórica fazendo alguma coisa a favor dos povos originários na África.
O que existe é um espírito de revanchismo enraizado na turminha woke. Enquanto isso não for de alguma forma superado, não há qualquer chance de superar o racismo.
Muito bom! Curioso, porque há muito tempo tb venho enxergando essa acusação racial como uma versão woke do pecado original. Com o agravante de, no catolicismo, o pecado pode ser redimido pelo batismo. Para os wokes, não há batismo que sirva. Tem que ficar se penitenciando pra sempre.
A diferença é essa mesma, Renata.
Muitíssimo bons, ambos os textos!