Uma efeméride borocoxô
08.09.22Efeméride, caro amigo, é uma palavra que, segundo o dicionário, tem dois significados: o primeiro é o da tábula astronômica que registra, a intervalos regulares, a posição de um astro; o segundo é o de ser a data de um fato importante. Podia ser também nome de divindade grega, de ninfa talvez, dessas que nos engazopam nalgum dos charmes que os deuses lhes concediam. É fácil imaginar um verso em que um certo varão ou sátiro caiu nos encantos das Efemérides e efemerizado ficou.
Quanto ao primeiro significado, deixemo-lo com astrônomos, astrólogos e adolescentes, que gostam de astros e outras coisas efêmeras (sim, efêmero e efeméride têm o mesmo étimo). Vamos ficar com o segundo e relembrar, nesta sexta-feira, que na longínqua quarta, anteontem pois, tivemos, entre outras coisas, a efeméride do Bicentenário da Independência.
Uma efeméride, perdoe o amigo o meu francês, senão o meu iorubá ou nagô, muito borocoxô. É que aqui em São Paulo choveu, e efeméride não combina com chuva – as únicas coisas que combinam com chuva são rock inglês triste, sambas do Lupicínio Rodrigues e filmes noir. Efeméride, no Brasil, costuma ter gente bêbada e seminua, baticum em volume alto, brigas generalizadas e tiroteios (Páscoa e Natal, por exemplo, são assim): a chuva nos negou tudo isso, inclusive porque também fez frio.
Ademais, veja: uma data tão importante como um bicentenário trouxe, afinal, pouca coisa em matéria de ruído, de reverberação, de bumbo batendo. Onde está a enxurrada de livros sobre o assunto, por exemplo? Cadê as séries, grandes ou mínis? Os filmes? Os simpósios? Os discos, originais e relançados? Os, vá lá, os programas de auditório? As semanas cheias de eventos e shows e palestras e o escambau?
É verdade que reabriram o Museu do Ipiranga, ainda que com festança modesta, e é verdade que houve desfiles. Mas, em 1972, uma efeméride menor, mas de nome mais comprido e complicado, o sesquicentenário, repercutiu muito mais e fez muito mais barulho. Rendeu inclusive o enterro, na Quinta da Boa Vista, de um programa de TV feito para nos lembrar, agora, em 2022, como era aquele Brasil, e que, parece, ninguém lembrou de desenterrar – talvez porque tenha um general em posição respeitável, talvez porque produto da finada TV Tupi. Ou talvez porque, como dizia o Ivan Lessa, de quinze em quinze anos o Brasil esquece o que aconteceu nos últimos quinze anos; que dizer, então, de cinquenta?
Borocoxô demais.
* * *
Rever a história é uma espécie de esporte: um tipo de salto com vara, digamos, em que o revisionista pula por cima de umas coisas e cai no colchão de umas conclusões, como direi?, novas. Diferenciadas. Diferentonas.
Por exemplo: deram para achar mórbido e feio o hábito dos nossos ancestrais de preservar órgãos de homens e mulheres célebres, e reclamaram de trazerem o coração de D. Pedro I para os festejos borocoxôs. Imaginem se esses reclamões soubessem que guardar um coração não é nada: a Rússia mantém num pote, por exemplo, o membro viril do Rasputin; Portugal, coração de D. Pedro fora, guarda num frasco a cabeça de Diogo Alves, serial killer do século XVIII; os Estados Unidos custodiam o cérebro e os olhos de Albert Einstein; a Igreja preserva algumas centenas de corpos incorruptos de santos, e relíquias várias, entre as quais ossos e sangue; e, afinal, a indústria mais próspera do Egito era a das múmias, que incluía não apenas gente, mas também gatos, bois e até besouros. O que é, diante disso, o coração de um monarca? Que susto esses saltadores vão levar quando descobrirem os ossuários dos cemitérios, hein?
Mas tem mais. Ultimamente, por exemplo, se lê por aí que a Independência foi branca e machista. Do que eu deduzo duas coisas.
Uma, que a colônia era trans e cor de abóbora.
Outra, que os machos brancos – ou um macho branco só, D. Pedro I – fizeram pelo menos uma coisa boa. Porque, creio eu, o salto com vara da revisão histórica ainda não pulou tão baixo a ponto de dizer que independência é mau negócio e o status de colônia é que é bacana.
Algo me diz, no entanto, que não perco por esperar.
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Quem espera, e nada faz, sempre alcança. Temos que lutar contra essa mentalidadeservil.
Adorei o final!! rsrsrsr Aguarde, que já já alguém vai dizer que vc é machista e homofóbico! kkkkkkk
Pois é, o tal sesquicentenário foi realmente um marco que ficou plantado na memória (talvez porque na ocasião a ditamole empanturasse a cabeça da galera com musiquinhas que rimavam com o nome da data e desfiles escolares onde a criançada vestida (?) de "índios" tivesse que ficar congelando num vento frio de final de inverno no sudeste...), e esse bicentenário de agora lembra outras coisas que também começam com "bi" e se aplicam muito bem ao que foi o protagonista "imbroxável" dessa ocasião...
Os festejos foram fracos, é verdade… Mas desde quando brasileiro dá bola pra festa cívica?? Nos meus 70 anos nunca vi comemorarem nada a não ser Copa do Mundo e Carnaval!
Só podemos concluir que não somos muito diferentes dos outros países, especialmente do velho mundo ( essa deve ser a maior coincidência: velhos, apesar de ser considerado o país do futuro).
Bem irônico. Colônia trans e cor de abóbora é o que se pode esperar pelo andar da carruagem em futuras comemorações.
meio confuso - pra mim....
Pena - ou ainda bem - que não viveremos até o tricentenário, em que comemoraremos o Grito de Ipanema, com Zumbi dos Palmares, o Marechal Deodoro e D. Pedro I juntos, casados (trisal??) e em cima de uma carruagem dourada. Pelo menos é isso que vão ensinar a nossos netos...
HAHAHA HAHAHA HAHAHA
Também estranhei. O sesquicentenário teve uma festa memorável preparada com anos de antecipação. As comemorações dos 200 de aniversário da pátria pareceu mais um carnaval com COVID! Que fase!
Colônia do Subdesenvolvimento.
Tirando astrônomos e astrólogos no mesmo contexto, muito bom!
O articulista não mencionou a principal peça preservada. O pênis de Napoleão. O medo de tão poderosa estrovenga fez com que Dom João VI fugisse para o Brasil facilitando a independência e, 200 depois a emergência de um presidente com problemas no setor.
É mórbido e feio mesmo.