ReproduçãoFesta após derrota da proposta: plurinacionalidade foi vista como ameaça à igualdade

De volta para o começo

Chilenos rejeitam proposta de Constituição progressista e empurram políticos a recomeçar o processo do zero, sob o risco de novos protestos
08.09.22

Ao longo de doze meses, um grupo de 155 constituintes eleitos escreveu uma proposta de Constituição para o Chile. Em 170 páginas, eles prometeram um paraíso progressista na Terra, listando mais de 100 direitos fundamentais. A natureza ganharia direitos, assim como os animais. Conceitos como pessoas neurodivergentes”, “dissidências sexogenéricas” e “integridade afetiva se espalhavam em 388 artigos. Festejado por progressistas dentro e fora do país, o texto final foi reprovado quando submetido ao escrutínio  de toda a população. Em um referendo com 85% de participação (mais do que os 78% de eleitores que votaram no Brasil, na última eleição), os chilenos jogaram o documento no lixo por 62% a 38%.

Como a derrota do texto vinha sendo cantada pelas pesquisas de opinião — embora não por uma margem tão avassaladora —, políticos já avançavam em negociações sobre qual seria o próximo passo. Pelas declarações dadas até agora, o trabalho vai recomeçar do zero, seguindo por uma rota diferente. “Antes do plebiscito do domingo, 4, o presidente e as forças políticas de direita e de esquerda já tinham assumido formalmente o compromisso com a continuidade do processo constituinte no caso da rejeição da proposta”, diz o sociólogo Aldo Mascareño, do Centro de Estudos Públicos, CEP, em Santiago. “O resultado do plebiscito, então, não deve ser interpretado como uma adesão dos cidadãos chilenos à Constituição de 1980. A população apoia um novo processo que não repita os erros do anterior, que seja mais breve e mais equilibrado politicamente”. A Constituição de 1980, sob a qual o Chile avançou economicamente a passos largos, incomoda por ter sido promulgada durante a ditadura de Augusto Pinochet.

Na noite em que a proposta foi repudiada, o presidente Gabriel Boric, ex-líder estudantil de esquerda, reconheceu o resultado das urnas e prometeu um “novo itinerário constituinte”, a ser construído com o Congresso e a sociedade civil. “Essa decisão exige que nossas instituições e atores políticos trabalhem com mais esforço, mais diálogo, respeito e carinho, até chegarmos a uma proposta que contemple a todos”, afirmou Boric.

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É bem possível que esse novo itinerário requeira um segundo plebiscito. Isso porque uma emenda feita em 2019 na Constituição vigente, para permitir a redação de outra proposta de Carta Magna, estabeleceu que, caso o novo texto fosse recusado, continuaria vigente a Constituição atual. A rigor, então, tudo permaneceria como está. Para fazer a mudança, Boric se escora principalmente no plebiscito de 2020, em que 78% dos chilenos apoiaram a redação de uma nova Constituição. Nas pesquisas feitas em agosto e setembro, esse número se mantém inalterado.

Líderes de partidos de esquerda e direita também defendem reformas ou um novo texto. Esta semana, siglas da direita, como a Renovação Nacional, RN, e a União Democrática Independente, UDI, afirmaram que pretendem seguir com o processo constituinte. Essa disposição deve favorecer as conversas entre o Executivo e o Congresso, que já estão em andamento. Em um gesto de boas intenções, Boric realizou uma reforma em seu gabinete de ministros, substituindo nomes radicais de seu passado de militante estudantil por integrantes experientes da centro-esquerda. Giorgio Jackson, de 35 anos, deixou a Secretaria da Presidência, que será ocupada por Ana Lya Uriarte. Ligada à ex-presidente Michelle Bachelet, Ana foi incumbida de traçar um novo plano com o Congresso.

Para evitar um segundo vexame, será preciso acertar na escolha dos redatores do próximo texto. Um dos principais motivos que levaram os chilenos a recusar o esboço é que eles não gostaram dos constituintes, selecionados em um pleito com voto facultativo, com comparecimento de apenas 43% dos eleitores. Como não se exigiu que eles integrassem partidos, muitos eram independentes e não acumulavam experiência na política. Um deles foi visto votando remotamente de dentro do seu banheiro durante a pandemia. Outro renunciou porque mentiu que tinha câncer para ser eleito. Além disso, como os eleitores de direita, que representam entre 40% e 45% da população, não deram muita atenção ao plebiscito, a maior parte dos constituintes eleitos era de esquerda, o que não espelhava fielmente o espectro ideológico da população.

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Agora, para não repetir o amadorismo, 41% dos chilenos preferem que se convoque uma comissão de especialistas. Outros 26% defendem que ela seja mista, composta por especialistas e parlamentares. Só 15% gostariam de uma nova Convenção. Artigos que causaram estranheza deverão ser evitados. Entre eles, estão a retirada de proteções para a propriedade privada, a mudança no sistema de Justiça e a extinção do Senado. A ideia de um estado plurinacional e as diversas concessões para os povos indígenas também assustaram, porque poderia ameaçar a igualdade dos cidadãos perante a lei, segundo os chilenos.

A julgar pelos movimentos dos últimos dias, os políticos parecem estar comprometidos em alcançar um acordo. O que pode sair do controle são os protestos. Em 2020, a sugestão de mudar a Constituição foi dada pelo então presidente Sebastián Piñera, de direita, como uma tentativa de aplacar as manifestações que paralisavam o país desde o ano anterior. Além da rejeição aos políticos e ao establishment, os protestos não traziam demandas claras. Eram tão nebulosos quanto os que ocorreram no Brasil, em 2013. Apesar disso, a sugestão de Piñera foi bem aceita porque convenceu a todos que uma Constituição fresca conquistaria coisas vagas como um “novo pacto social”, um “acordo com a cidadania” e seria capaz de “sintonizar o país com os novos tempos”. Os vândalos voltaram para casa, mas a ideia se transformou em um fiasco. Nesta quarta, 7, estudantes secundaristas realizaram “sentadas” nas plataformas do metrô de Santiago. Três estações foram fechadas, prejudicando milhares de pessoas. Depois, os jovens pularam as catracas e saíram sem pagar, o que eles chamam de “evasão massiva”. Jovens encapuzados queimaram dois ônibus nesta quinta, 8, em Santiago. Foi exatamente desse jeito que começaram os protestos de 2019. Um péssimo sinal.

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  1. Aqui no Brasil - infelizmente - não teve plebiscito. O monstrengo criado pelos nossos constituintes em 1988 está valendo até hoje. E considerando o que STF inseriu depois sem passar pelo Congresso, a criatura está até mais feia que essa que foi rejeitada no Chile.

  2. Os chilenos em boa hora viram a merda que fizeram nas urnas ao se entregaram tolamente ao comunazismo ladrão assassino ... mas sair disto não será nada fácil ... juízo brasileiros.

  3. O "não" reflete maturidade política do povo chileno. Acho que uma constituinte só seria legítima se houvesse uma manifestação massiva na escolha dos eleitos, tipo 70%, e não 43% como essa que foi rejeitada. Talvez a melhor alternativa para o Chile no momento sejam emendas à constituição vigente, que apesar de ter sido gestada na ditadura conseguiu levar o Chile a um bem estar muito superior ao dos outros países da região

    1. O Chile 🇨🇱 é a jóia da América Latina, você não deve conhecer. Eles amam os brasileiros, que os visitam, ao contrário da Argentina, que nos detestam ainda hoje.

  4. Eu estava em Santiago no domingo, presenciei uma votação tranquila, não soube sobre nenhuma depredação. Teve sim muita festa e buzinaços pelo rechazo. O povo tem razão, nada de constituição cheia de pegadinhas.

  5. Dá pra organizar uma nova Constituição e "organizar" o país (melhorar a saúde, a educação, políticas públicas...) ao mesmo tempo? Ñ entendo do assunto e sou bem simplista, mas, o q me parece, é q estão demandando um tempo precioso com o q ñ é essencial. Em todo o caso, o presidente pende p/ o centro (vai ter q dialogar +) e a população, se qr uma nova Constituição deveria aprender a se manifestar (como nós tb precisamos), essa história de destruir e atrapalhar a vida das pessoas ñ tem cabimento!

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