José Cruz/Agência BrasilO desfile "cívico-militar"do 7 de Setembro: de novo, não teve golpe

O golpe que nunca vem e a democracia que nunca chega

O Brasil vive o paradoxo da instabilidade estável. Os bárbaros já chegaram e estamos esperando para ver se eles vão mesmo levar a barbárie até suas consequências extremas
08.09.22

De novo, não teve golpe.

A essa altura, é verdade, parece que ninguém mais esperava uma tentativa de golpe. Havia, isso sim, a expectativa de que o cardápio básico do bolsonarismo fosse servido no Dia da Independência: ataques à democracia, ao STF, às urnas. Dias antes dos comícios patriótico-eleitoreiros do 7 de setembro, Jair Bolsonaro havia chamado Alexandre de Moraes de “vagabundo”. Talvez fosse um passo a caminho da moderação: um ano atrás, o termo usado foi “canalha”.

Falo em moderação, bem entendido, para os padrões de Bolsonaro. No comício em Brasília, ele deu a deixa para a multidão vaiar o STF. Depois da vaia, emendou o chavão: “A voz do povo é a voz de Deus” (momentos antes, Deus, esse pândego, juntara-se aos gritos de “imbrochável, imbrochável”). Bolsonaro mandou ainda um recado velado ao STF, repetido em termos similares no comício em Copacabana: “Com uma reeleição, nós traremos para dentro das quatro linhas [da Constituição] todos que ousam ficar fora delas”. De novo, essa ameaça só parece velada para padrões bolsonaristas; na real, ela é tão gritante e escandalosa quanto o terno de papagaio do Véio da Havan.

A produção de um clima de tensão constante faz parte do teatro canastrão do presidente. Por isso ele xinga ministros do STF, ofende jornalistas com termos cafajestes e lança dúvidas boçais sobre a segurança das urnas eletrônicas. Mais recentemente, em resposta a um Judiciário que resolveu defender a democracia impondo a obrigação de que todos sejam democratas, Bolsonaro pegou o vezo de falar em “liberdade”, mas a gente sabe que essa defesa da livre expressão dura só até o próximo especial de Natal do Porta dos Fundos. E é assim que ele entusiasma os seguidores e alarma os opositores.

Sob a ameaça do golpe que não virá, o cenário político brasileiro vive o paradoxo da instabilidade estável. Tal como os cidadãos do império descrito em À Espera dos Bárbaros, poema do grego Konstantinos Kaváfis, estamos todos imobilizados, na expectativa de bárbaros que nunca chegam. Bem, o paralelo é imperfeito: no caso brasileiro, os bárbaros já chegaram, e estamos esperando para ver se eles vão mesmo levar a barbárie até suas consequências extremas.

Existe uma minoria ruidosa e vulgar que se sente frustrada porque o golpe não veio, não vem, não virá. São aquelas figuras histriônicas que no Dia da Independência levantavam faixas pedindo intervenção militar. E há outro grupo inflamado cujos sentimentos sobre o golpe comportam ambiguidades esquisitas: a esquerda petista.

O PT vem propagando a ideia de que Dilma Rousseff foi derrubada por um golpe. Alguns petistas de alto ou médio escalão às vezes hesitam em aderir à tese: em 2016, com o processo de impeachment ainda em curso, Fernando Haddad disse que golpe era uma palavra “muito dura”. Mas o grão-petista confirmou a palavra, em toda sua dureza: Dilma sofreu, sim, um golpe, disse Lula no debate entre candidatos à presidência na Band.

No governo Temer, começou a ganhar corpo uma conversa estranha sobre a necessidade de resistir ao golpe (isso quando não se falava em resistir ao fascismo!). A palavra “resistência” conjurava a miragem histórica do enfrentamento armado à ditadura militar. O documentário Democracia em Vertigem deu forma a essa ilusão, fundindo a trajetória dos pais da diretora Petra Costa, que participaram de um movimento clandestino contra o regime militar, à derrocada de Dilma Rousseff.

Depois que um capitão reformado que exalta a ditadura e seus torturadores foi eleito presidente, “resistência” tornou-se um clichê nos meios progressistas. Hoje, quando ouço um resistente gritando “golpe”, já não sei mais se ele está fazendo uma denúncia ou expressando um desejo recalcado. O  jovem militante de rede social anseia pela fase final do golpe, em que os tanques ganharão as ruas – fazendo muita fumaça – e os porões do DOPS serão reabertos. Só assim seus pesadelos mais temidos e suas ilusões mais queridas se tornariam realidade.

Sei que também há gente adulta e razoável preocupada com as inegáveis aspirações antidemocráticas do bolsonarismo. No entanto, a fixação no fantasma do golpe vem acompanhada de um vício de análise: a cada vez que uma insinuação de ruptura não se cumpre, conclui-se que nossas instituições democráticas são vigorosas e estão funcionando. Na verdade, a submissão da máquina pública aos ditames da chamada guerra cultural – iniciada nos anos petistas, sim, mas radicalizada com Bolsonaro – já corroeu as tais instituições. E o desgaste não se limita ao Estado aparelhado por milicos e olavetes. Igrejas, escolas, empresas e até grupos familiares estão divididos por ideologias beligerantes.

No ano passado, entrevistei o filósofo inglês John Gray para a finada revista Época. O autor de O Silêncio dos Animais fez uma avaliação desalentadora sobre os Estados Unidos depois do governo Trump: o país ainda é uma democracia, com eleições limpas e regulares, mas não pode mais ser considerado uma sociedade liberal. O liberalismo de que Gray fala (e cujas ilusões critica em obras como Cachorros de Palha) não se limita ao livre mercado, mas se estende às liberdades individuais e às instituições que as sustentam. “Para se ter de fato uma sociedade liberal é preciso que exista uma grande variedade de instituições que não são marcadamente politizadas”, dizia Gray na entrevista. Essa condição já não se encontraria mais nos Estados Unidos. “Não acredito que uma sociedade liberal ainda esteja viva quando todas as instituições vivem em guerra interna e estão em guerra umas com as outras”, complementava o filósofo. Sem nunca ter desenvolvido uma sociedade liberal digna desse nome, o Brasil vive a mesma situação.

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  1. Eu vi a entrevista d Rosangela Moro, candidata a deputada federal p União Brasil, nº 4040, feita em agosto p.p. c/ Guilherme Waltenberg do Poder360. Ela afirmou q é contra qlquer privilégio, contra fôro privilegiado, e q resolveu se candidatar p combater o sistema q ñ aceita a LavaJato(LJ). Ela afirmou q em SP o sistema quase extinguiu e não quer a LJ! C/ isso percebeu q a corrupção precisa ser combatida e quer fortalecer a luta contra a mesma. Ficou indignada c/ o sistema multar procuradores!

  2. Você acha que Lula é um democrata? Adora os regimes comunistas, envia nosso dinheiro para lá, só não censurou a mídia pq não deu. Tinha até ministro do exterior paralelo que atuava no lugar de Amorim. Concordo que Bolsonaro não seja

  3. Seu texto é primoroso, apesar de desalentador. Desalentadora é A realidade de um país, dito do futuro, cujo futuro promissor nunca chegou.

  4. Infelizmente enquanto a maioria dos brasileiros tem seus políticos como heróis, salvadores do Brasil. Enquanto essa população analfabeta ( funcional ou não) idolatra como santos protetores dos pobres abandonados continuaremos parados. Um entra e sai de políticos populistas interessados em defender seus próprios interesses.

  5. Estranha a manchete, o golpe só vira/viria se ele perder as eleições, não faz muito sentido ele se mobilizar antes - a não ser que haja algo como impugnação da candidatura dele. Fora isso, o texto é bem realista.

  6. Quem pode, vive o seu próprio mundo. . . Aos que não tem seu próprio mundo pra viver, se contenta em viver na pseudo democracia.

  7. Excelente texto. Ao mesmo tempo que nos traz o desconforto da democracia que nunca chega, também nos traz a satisfação de que o povo não é tão otario para desejar um ditador ocupando o cargo de chefe da nação por muito tempo.

  8. Excelente artigo! Só discordo quando diz que há uma minoria à espera de um golpe. Acho que a multidão que encheu as ruas em 7 de setembro não é propriamente uma minoria a qual se possa ignorar. Trata-se de uma multidão, com posicionamento ferrenho à favor de qualquer comando do seu líder, sem pensamento crítico de nenhuma espécie.

  9. Excelente texto, pois é dos poucos que são produzidos nos últimos tempos que consegue ponderar as visões radicais, extremadas, apaixonadas dos torcedores de um ou de outro, fazendo as devidas críticas. Alguns pensam e agem assim mesmo, achando que política se faz com emoções exacerbadas, como em um jogo de futebol, afinal votos são necessários para se eleger e se manter no poder. Infelizmente, perdem por não perceberem os enredos dos roteiristas cuidadosamente redigidos.

  10. Que texto formidável. Muitos insights profundos e originais, sobre coisas já tão faladas e batidas, mas raramente tão bem refletidas.

    1. O problema é que o brazil está cheio de textos formidáveis, com gente refletido muito bem (mas não movendo absolutamente nada).....

  11. Não há porque termos vergonha ou medo de nos defendermos da quadrilha e tentáculos se quisermos um pais livre e democrático ... qualquer cego vê que a quadrilha ladravaz em conluio com a tal suprema corte ditadora de sua nomeada são os grandes inimigos da pátria e se o povo não tomar atitude e pelas urnas enquadrar estes ditadores iremos ao caos e só Zeus impede um banho decdangue que nós homens de bem deste país temos de evitar ... juízo ZéBrasil a vítima maior pode ser você.

  12. Gostaria que o autor explicasse quais são as “inegáveis aspirações antidemocráticas do bolsonarismo”. Mais um clichê sem sentido Antonio

  13. Lula, o PT e com as suas mentiras e corrupção crônica criaram o Bolsonaro. Bolsonaro com sua ignorância crônica, ressuscitou o Lula e sua gang. Ver corruptos subirem a rampa, comemorando a vitória, seria trágico. Vamos de Bolsonaro e Tarcísio. Devolver a chave do cofre para o bandido julgado, condenado e delatado por parceiros, seria conivência com a bandidagem...

  14. Lula já teve no país, mais de 80% de aprovação. Os cidadãos deram isso a ele, q retribuiu com a maior corrupção da nossa história. Bolsonaro teve o apoio de brasileiros como eu, p/ vencer o PT em 2018. Nos retribuiu com erros absurdos na pandemia, que contribuíram para superarmos os 680 mil mortos. Bolsonaristas usam o voto como arma contra o Lula. Petistas usam o voto como arma contra Bolsonaro. E o Brasil assiste a guerra fatricida sem futuro, que arrasta família, parentes e amigos. SIMONE 15.

    1. Esse é o sentimento dos brasileiros, como vc, que não se dobraram ao sectarismo fanático, e tbem onde me incluo. Infelizmente, nossa lucidez tem sido inútil neste vale de iniquidades.

  15. O golpe nunca virá, seja de esquerda seja de direita. Esses dois líderes de pano só fazem discurso pra sua plateia pra ganhar o poder, que é tudo o que eles querem. São estelionatários à procura de otários.

    1. Concordo plenamente com seu comentário Avelar. Essa história de golpe é para inglês ver. Essa gente não quer golpe. Estão todos mamando no sangue do povo brasileiro.

  16. Já nas primeiras letras nossas crianças deveriam receber o ensinamento do valor indispensável das liberdades democráticas e de projetos bem objetivos para o desenvolvimento do país, em lugar de promessas de palanque, dando-se ênfase na desconstrução do infame, abominável racismo, baseado na mentira da inferioridadedos irmãos negros, inculcada nas mentes para justificar a infâmia de sua escravização !

  17. Comentar de madrugada é sempre complicado (sai +bobagem q o normal), mas ler td isso me lembrou do Beavis & Butt-Head (ñ sei se alguém lembra...)! Seres de esquerda, de direita, de centro, liberais, conservadores e seja lá o q + existe... Somos um bando de tontos, fazendo nada e falando idiotices! Se era pra ser sobre "nada" podíamos, pelo menos, ser "Friends", mas ñ! Somos a porcaria do "Beavis & Butt-head"😒. (Jerônimo, amei ver seu artigo por aqui, mesmo! Espero q tenha + domingo😬😜🤗)

    1. Não sei se alguém , os que leram gibis se lembrarão com certeza do Dr Satan , nas horas de maior empolgação , ele levantava a mão onde se via dependurados , o dinheiro o laboratório e outras coisas que dominava , os terrestres. Tal qual estamos vendo e vivendo. Não só os Estados Unidos perderam ou perderão sua liberdade como todas as outras nações

  18. O Brasil é como Ruy Goiaba mencionou em recente artigo: "Um onibus circular que saiu da barbarie e está indo para o abismo sem passar pela civilização"

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