MarioSabino

Civilização e barbárie em Paris

08.10.21

A minha sala preferida do Museu do Louvre está longe da balbúrdia causada por La Gioconda, de Leonardo da Vinci, o imã pop que atrai milhões de visitantes que menos a veem do que a fotografam. É a sala onde estão as pinturas monumentais de Rubens, o pintor flamengo, que retratam a vida da rainha Marie de Médicis, ou Maria dei Medici, a florentina que se casou com o rei Henri IV, de quem foi a segunda mulher. Depois da morte do marido, ela mandou e desmandou na França do começo do século XVII, até ser enxotada do poder pelo próprio filho, Louis XIII, que a exilou no castelo de Blois, no Vale do Loire, sob os auspícios do cardeal Richelieu, a quem a rainha havia nomeado ministro da Guerra e que dá nome à ala do Louvre onde as pinturas foram instaladas. 

O conjunto de telas é o Ciclo de Marie de Médicis e foram encomendadas a Rubens pela própria rainha, para decorar o Palácio do Luxemburgo, hoje o Senado francês. O palácio e o jardim foram construídos por ordem de Marie de Médicis, como o seu retiro particular, quando a margem esquerda do Sena ainda era apenas uma sobra da Idade Média. Ela queria que a arquitetura do palácio reproduzisse a do Palácio Pitti, a sua casa em Florença, que é uma joia do Renascimento, ao harmonizar as ordens dórica, jônica e coríntia, nas suas colunas de fachada, e abrir-se, na parte posterior, para o magnífico Jardim de Boboli, de onde se tem uma visão formidável de Florença. Ela queria um Pitti, mas teve de se contentar com um palácio francês e seu telhado de ardósia. De qualquer jeito, nada mau.

A sala no Louvre abriga 21 pinturas cujo tema é a vida de Marie de Médicis, mais três grandes retratos da rainha e sua família.  As dimensões das obras correspondem ao tamanho do ego da florentina — cada uma das 21 pinturas tem 4 metros de altura e mostra uma etapa da trajetória da rainha, desde a infância até o apogeu. Todas são alegóricas, de uma intensidade barroca cuja beleza aqui e ali sucumbem ao cômico. Imagino, por exemplo, que Rubens deve ter rido um bocado, e espero que ninguém o tenha visto, ao pintar o episódio no qual Henri IV recebe o retrato de Marie de Médicis, com quem viria a casar-se, e se deixa desarmar pela deusa do Amor. O retrato é carregado por anjos e a deusa sopra-lhe algumas palavras ao ouvido, enquanto ele admira, embevecido, a imagem da futura mulher. Outra cena de alguma comicidade é a que mostra a educação da rainha. Ela tem como professores nada menos do que Minerva, a deusa da sabedoria, e Mercúrio, o mensageiro dos deuses. Louis XIII não poderia deixar de exilar uma mãe como essa.

Rubens teve um trabalhão para completar o ciclo, uma vez que as crises políticas envolvendo Marie de Médicis eram permanentes e ele não podia ferir suscetibilidades de personagens que ora eram aliados, ora inimigos. Na hora de receber o pagamento, quase levou um calote e teve de se contentar com uma soma menor do que a combinada.

Antes de Marie de Médicis, outra regente florentina reinou na França: Catherine de Médicis, prima da primeira, acusada (alguns dizem que injustamente) de comandar o massacre de São Bartolomeu, em Paris, quando protestantes foram mortos por católicos, na guerra de religiões que chegou ao final depois que Henri IV, protestante, converteu-se ao catolicismo e publicou o Édito de Nantes, estabelecendo a paz entre os dois lados. Ao decidir converter-se, ele teria dito que “Paris vale uma missa”. Ele escapou, assim, do destino do seu predecessor, Henri III, filho de Catherine, assassinado por um fanático católico — e viu-se obrigado a se casar com uma católica, Marie de Médicis, justamente, aquela apresentada a ele pela deusa do Amor. Entre as estátuas das vinte rainhas que enfeitam o Jardim do Luxemburgo, não há nenhuma da prima Catherine de Médicis. Ela está para a monarquia, assim como Robespierre está para a Revolução Francesa. Terror e terror. Também não há nada dedicado a Robespierre na capital da França. 

Plot twist. Escrevi sobre as pinturas de Rubens que retratam Marie de Médicis e resvalei em Catherine de Médicis, com o pensamento em uma terceira personagem feminina, que se dedica neste momento a destruir meticulosamente Paris: a prefeita socialista Anne Hidalgo, espanhola de nascimento, cuja atuação egoica e fanática alimenta sentimentos xenofóbicos. Reeleita graças à pandemia, que levou à ausência de 70% dos eleitores na votação do ano passado, ela resolveu promover, no seu segundo mandato, um massacre de São Bartolomeu urbanístico-arquitetônico. Para ela, Paris não vale uma missa, não vale nada.

A cidade está mais suja do que nunca, com latas de lixo transbordantes que fazem a festa dos ratos. Calçadas e ruas inteiras foram tomadas por mesas de bares e restaurantes que infernizam o cotidiano de transeuntes e moradores. As pichações se multiplicam. Postes do século XIX foram cortados e bancas de jornal antigas, substituídas por grandes cubos de plástico. As delicadas fontes de água potável em ferro fundido, as fontes Wallace, deram lugar a bebedouros nojentos. Para completar a barbárie, Anne Hidalgo mandou instalar mictórios nas ruas — sim, mictórios. O sujeito abre a braguilha, aproxima o pênis de um buraco numa caixa de plástico e se alivia aos olhos de todos, e sem torneira para lavar as mãos. Como há vazamentos nesses mictórios, trata-se também da institucionalização do xixi no canto da rua.

Logradouros históricos, como a Place de La Concorde, estão abandonados, com mato que cresce entre os paralelepípedos. Fitas adesivas remendam equipamentos públicos sem manutenção adequada. Na fúria da prefeita contra a circulação de automóveis, blocos de concreto horrendos, amarelos, bloqueiam ruas — que estão atulhadas de bicicletas e patinetes de aluguel jogados nas calçadas. A pretexto de “vegetalizar” a cidade, as árvores de Paris foram cercadas por plantinhas murchas, com uma cerquinha de compensado vagabundo que não segura a terra. As grelhas de ferro tradicionais, que protegiam as raízes das árvores, foram arrancadas, simplesmente. Os antigos bancos da cidade estão sendo trocados por outros de uma feiura inqualificável. Escadarias históricas vêm sendo pintadas com cores berrantes, a pretexto de “intervenções artísticas” (ah, Rubens). Anne Hidalgo cogita, ainda, criar parques, ou algo do gênero, onde viciados em crack possam se drogar livremente, como se isso fosse resolver o problema que afeta principalmente um dos bairros periféricos. E nem Deus sabe o que fará com o entorno da Notre-Dame, que pretende reformar. Ou com a avenida Champs-Elysées, da qual pretende tirar faixas de tráfego, para “vegetalizar”, juntamente com a Place de La Concorde.

Há método na incompetência e na desídia. Assim como os revolucionários de 1789 e a Comuna de Paris, de 1870, trata-se de cancelar a cidade erguida por nobres e burgueses. Anne Hidalgo é da mesma estirpe dos jacobinos que decapitavam esculturas de santos e reis e dos incendiários que fizeram terra arrasada do Palácio das Tulherias. O seu massacre urbanístico-arquitetônico é levado a cabo em nome da democracia e da sustentabilidade. Com esse discurso, ela quer ser presidente da França. Felizmente, não tem chance. Infelizmente, o sistema político francês permite que ela continue como prefeita, mesmo sendo candidata.

Se Paris sobreviver a Anne Hidalgo, alvo de movimentos cidadãos como o saccage paris, com crescente presença nas redes sociais, espero que um abnegado realize um ciclo sobre a vida dela, não em telas monumentais, mas em quadros furrecas, expostos não no Louvre, mas no Museu Carnavalet, dedicado à história da cidade. O ciclo de Anne Hidalgo ensinaria como a civilização demora séculos para ser erigida e pode levar somente alguns anos para ser aniquilada.

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