Favores sem limites
Sérgio Cabral a bordo do avião executivo de Eike Batista, com destino a Porto Seguro. Tour de palestras de Lula pelas Bahamas, Cuba e Venezuela, na conta do “programa de milhagens” da Odebrecht. Cid Gomes rumo às férias nos Estados Unidos no jatinho da Grendene. Não é preciso viajar tanto no tempo para cruzar com episódios em que empresários milionários mimam políticos influentes, oferecendo-lhes como presente o conforto de um voo exclusivo, sem escala, para passeios ou negócios privados. Sempre, como alegam, sem contrapartida. A prática é tão antiga e tão promíscua que desde o início deste século o código de conduta ética do governo federal, replicado em versões regionais nos estados, proíbe as autoridades de receberem “transporte, hospedagem ou quaisquer favores de particulares de forma a permitir situação que possa gerar dúvida sobre a sua probidade”. Trocando em miúdos, quando há um possível conflito de interesses entre o empresário que bancou as passagens e o agente público que desfrutou da viagem. Apesar do risco de violar a Constituição e de ser enquadrado na Lei de Improbidade Administrativa, com chance de ter os direitos políticos cassados e os bens bloqueados, ainda há quem caia em tentação e embarque nesse tipo de benesse que só o poder proporciona.
Nesta semana, Crusoé revelou dois casos envolvendo três políticos poderosos que decidiram correr esse risco para passar o feriadão de Finados em praias paradisíacas. O senador Flávio Bolsonaro e o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, foram “resgatados” em Fernando de Noronha no último domingo, 1º, por um jatinho enviado pelo empresário Ygor Moura, dono de uma franquia de clínicas de depilação, em meio à repercussão negativa da viagem de uma extensa comitiva de autoridades ao arquipélago no litoral de Pernambuco. Salles havia aterrissado na quarta-feira, 28, em um avião da Força Aérea Brasileira, para uma agenda oficial no local. Estava acompanhado de outros integrantes do primeiro escalão do governo de Jair Bolsonaro, como Jorge Seif Junior, secretário da Pesca, Marcelo Álvaro Antônio, ministro do Turismo, Milton Ribeiro, ministro da Educação, e Gilson Machado Neto, presidente da Embratur. Já Flávio chegou no dia seguinte, com passagens emitidas pelo Senado no esquema de reembolso da cota parlamentar, e só retornaria a Brasília na manhã de terça-feira, 3. A assessoria do filho 01 do presidente chegou a negar a viagem, dizendo que o senador havia ficado na capital federal. Depois, afirmou que as passagens para Noronha foram pagas pelo próprio senador, mas que funcionários do seu gabinete pediram o reembolso com verba pública “por engano”. O reembolso, então, assim como as diárias na ilha que também seriam bancadas pelo Senado, foram cancelados, segundo a assessoria.
Antes mesmo da polêmica envolvendo os bilhetes aéreos de Flávio, a viagem a Noronha já havia provocado atrito político depois que Crusoé mostrou que Salles passou mais de três horas em um dos bares mais caros e badalados da ilha, com empresários locais, sentado ao redor de uma mesa fartamente abastecida com garrafas de vinho branco, antes de um polêmico post na conta oficial dele no Twitter. No post, o ministro respondeu a uma declaração do presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, chamando-o de “Nhonho”, em referência ao personagem gorducho da série de televisão Chaves. O ministro negou ter sido o autor do tuíte e disse que sua conta na rede social foi usada indevidamente. O presidente Jair Bolsonaro chegou a programar uma viagem a Fernando de Noronha naquele mesmo fim de semana, mas abortou o plano depois da crise. Diante do clima mais turbulento, Flávio Bolsonaro decidiu antecipar sua partida, pegando carona com Ricardo Salles no jatinho privado de Ygor Moura. A festa, porém, não acabaria ali. A aeronave levou os dois até São Paulo para que eles pudessem celebrar o aniversário do secretário-executivo do Ministério das Comunicações, Fábio Wajngarten. A festa, na litorânea Maresias, também contou com presença do ministro das Comunicações, Fábio Faria, e da mulher dele, a apresentadora Patrícia Abravanel, filha de Silvio Santos.
Pelo relato de Ygor Moura, além de Flávio e Salles, o aniversariante Fábio Wajngarten também se beneficiou do “presente” dado pelo amigo empresário, que bancou a viagem dos convidados ilustres. Pelo código de conduta da administração federal, autoridades são proibidas de receber presentes em função do cargo, salvo de autoridades estrangeiras nos casos protocolares em que houver reciprocidade, ou brindes de cortesia com valor inferior a 100 reais. “A meu ver, essas ‘caronas’ ferem os princípios de ética e moralidade. O homem público, tal como a mulher de César, tem que não apenas ser mas também parecer honesto. A Constituição Federal, no artigo 37, aborda os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. A aceitação de uma viagem em jatinho particular fere claramente os princípios da moralidade e impessoalidade. Aqueles que oferecem jatinhos estão tentando estreitar o contato com as autoridades para obter posteriormente favores e informações privilegiadas relativas aos governos. Em um mundo ideal, situações do tipo deveriam constranger tanto o empresário que ofereceu como a autoridade que aceitou”, afirma Gil Castello Branco, fundador e secretário-geral da Associação Contas Abertas, que fiscaliza os atos e os gastos públicos.
Segundo dados do Ministério da Economia, só a viagem da comitiva liderada pelo ministro Ricardo Salles custará ao menos 18,8 mil reais com o pagamento de diárias e passagens. Além dele, outras cinco autoridades marcaram presença no arquipélago durante o feriado. Curiosamente, a Comissão de Ética Pública da Presidência da República, que fiscaliza o cumprimento do código de conduta das altas autoridades do país, como o artigo que proíbe o recebimento de transportes e hospedagens por particulares, foi criada em 1999 após o escândalo da farra aérea praticada por ministros do governo Fernando Henrique que usavam aviões da FAB para viajarem com a família para destinos turísticos como Fernando de Noronha.
O uso de jatinho de empresário não foi uma exclusividade do filho e do ministro de Jair Bolsonaro durante o feriado. O governador de São Paulo, João Doria, principal adversário político do presidente da República, embarcou na manhã da última sexta-feira, 30, com a mulher e os três filhos em uma exclusivíssima aeronave do empresário Rubens Ometto, dono do grupo Cosan, para passar cinco dias em Saint Barth, a ilha mais luxuosa do Caribe. Com capacidade para até 19 passageiros, a aeronave modelo Falcon 7X aterrissou na tarde daquela sexta-feira no aeroporto Princess Juliana, na ilha vizinha de Saint Martin, usada por turistas que vão visitar Saint Barth, onde o aeroporto não comporta aeronaves maiores. Reduto de celebridades como a cantora Beyoncé e o jogador Cristiano Ronaldo, Saint Barth oferece hospedagens de frente para o beira-mar caribenho com diárias que variam de 5 mil a 15 mil reais por pessoa. O passeio da família Doria só terminou na noite de terça-feira, 3, quando o jatinho de Rubens Ometto retornou ao aeroporto internacional de Guarulhos.
Na véspera da viagem, Doria havia enviado um ofício à Assembleia Legislativa comunicando que se ausentaria do país entre os dias 30 de outubro e 2 de novembro para uma viagem particular. O jatinho usado pelo tucano, segundo dados da Agência Nacional de Aviação Civil, a Anac, está registrado em nome da Aguassanta Participações S/A, uma das empresas controladas por Rubens Ometto. Com uma fortuna estimada em mais de 4 bilhões de reais, Ometto é um dos maiores empresários brasileiros e comanda um grupo de gigantes companhias dos setores de energia e infraestrutura, como Cosan, Raízen e Comgás. É por causa desta última, aliás, que o empréstimo da aeronave fabricada pela francesa Dassault suscita um possível conflito de interesses. Sob o controle de Ometto desde 2012, a Comgás tem seus serviços de distribuição de gás e as tarifas regulados pela Agência Reguladora de Saneamento e Energia do estado, a Arsesp. Ou seja, é o órgão vinculado ao governo Doria que define os reajustes dos valores cobrados pela concessionária dos consumidores paulistas.
Rubens Ometto não só liberou seu jatinho para a viagem de Doria ao Caribe, na última semana, como ajudou o tucano a chegar ao Palácio dos Bandeirantes nas eleições de 2018, com uma doação de 250 mil reais, a maior contribuição feita à campanha do governador na ocasião. Um aporte mais generoso para o voo político de Doria já havia sido dado dois anos antes. Foram 500 mil reais doados pelo empresário ao tucano na disputa pela prefeitura de São Paulo, em 2016. Neste ano, Ometto repete a dose com o sucessor de Doria na capital paulista. Já foram 200 mil reais em uma transferência eletrônica para a conta da campanha do prefeito Bruno Covas, também do PSDB. O apreço de Doria ao amigo e colaborador Rubens Ometto é tão grande que o governador fez questão de comparecer a uma homenagem prestada ao empresário em setembro deste ano, na Câmara Municipal paulistana, pelas milionárias contribuições que as empresas dele deram durante a pandemia, doando equipamentos de saúde e até dinheiro para a construção de uma fábrica para produzir a vacina contra a Covid-19. “Sempre teve a generosidade como uma marca da sua existência. Eu mesmo sou testemunha disso”, disse Doria na ocasião, em referência ao amigo Rubens Ometto.
Na Assembleia Legislativa, deputados bolsonaristas que fazem oposição ao governador tucano já anunciaram que vão cobrar esclarecimentos sobre a viagem ao Caribe no jatinho do empresário. O mesmo ímpeto, porém, não se viu em Brasília, onde os apoiadores de Bolsonaro se calaram sobre a aventura aérea envolvendo o filho 01 do presidente da República e o seu ministro do Meio Ambiente no mesmo feriado. Em ambos os casos, por pouco as viagens nas asas de aeronaves de amigos não ficaram no escurinho da agenda das excelências.
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