Marinha do BrasilTodos vocês que ouviram o chamado, pouco importa suas afiliações ideológicas  – vocês provam que o país não precisa continuar se arrastando na lama fétida

Um chamado para nos arrancar da lama

No seu momento mais crítico, Porto Alegre e o Rio Grande do Sul despertaram o melhor de seus cidadãos e de todos os brasileiros
10.05.24

Meu pai nunca esqueceu o fedor das casas inundadas. 

O episódio ocorreu antes de eu nascer – nos anos 1950, suponho. Como funcionário da prefeitura de Montenegro, meu pai foi chamado a ajudar famílias que estavam retornando a suas casas depois de uma enchente. Ele terá visto sua cota de móveis arruinados e geladeiras estragadas, mas o que mais o impressionou foi o cheiro que o rio Caí deixou nas casas que alagou. A lama que se depositara nos soalhos estragados exalava um odor pungente de esgoto, detritos, podridão.  

Ouvi essa história várias vezes. Gostaria de ouvi-la de novo (não é mais possível). Desejaria preencher lacunas sobre as quais nunca perguntei. Quem eram aquelas famílias ribeirinhas? Do que viviam? Onde se abrigavam quando o Caí subia? Meu pai não dava maiores informações sobre essas pessoas. 

Só falava da tristeza que as consumia. 

Tenho pensado nessa tristeza. Escrevo na quarta-feira, 8 de maio. As chuvas que castigaram Montenegro e outros 394 municípios gaúchos deram uma trégua, mas há previsão de que voltem a cair no fim de semana. Aguardamos, ansiosos, que as águas finalmente baixem. 

Então, depois do momento terrível em que tiveram de fugir da enxurrada, muitos viverão a hora triste de retornar a suas casas, para encontrá-las estragadas, enlameadas. 

*** 

Nasci em Montenegro, mas vivi pouco tempo lá. Ainda criança, cheguei a ver uma enchente na cidade. Se lembro bem, eu estava dentro de um carro, em algum ponto alto. O Caí transbordara de suas margens, espalhando sua cor marrom sobre uma vizinhança de casinhas de madeira pintadas de cores pastéis, como uma versão terceiro-mundista de um cenário de Wes Anderson. Nada comparável à foto aérea que vi na semana passada, na qual o marrom engolia um naco bem maior da cidade. 

Guardo mais vívida a imagem de uma enchente em São Leopoldo. Nessa altura, já adolescente, eu morava em Estância Velha. Estava com uma turma de amigos, em um ônibus, voltando não lembro de onde. Passamos por uma área de casebres que o rio dos Sinos invadira. Os passageiros do ônibus faziam comentários compadecidos sobre a má sorte de quem vivia ali. Um amigo insensível disse não entender porque tanta gente morava em um lugar sujeito a alagamento. Outro amigo retrucou que muitas pessoas não teriam para onde ir. 

Não ter para onde ir: em sentido literal ou figurado, a expressão define nossa vida hoje.   

*** 

As enchentes locais que busquei na profundeza escura da memória não são parâmetro para o que vemos agora. As chuvas vêm castigando quase o estado todo desde o final de abril. Por acaso, nesse mesmo abril – “o mês mais cruel”, diz o verso famoso de T.S. Eliot – completaram-se vinte anos da minha vinda para São Paulo.  

Vinte anos desde que deixei Porto Alegre. 

Morei em Porto Alegre por alguns anos, na infância. Foi em uma escola estadual próxima ao Parque da Redenção que aprendi a ler e escrever. Seguiram-se quase dez anos em outras cidades, e então retornei à capital gaúcha para cursar Jornalismo na UFRGS. Comecei minha vida profissional em Zero Hora (ou “na Zero Hora”, como os gaúchos dizem familiarmente). Depois cogitei abandonar o jornalismo pela vida acadêmica. Concluí o mestrado em Letras na PUC e estava começando o doutorado quando surgiu a oportunidade de trabalhar em São Paulo. Voltei ao jornalismo, deixei Porto Alegre.  

Hoje, as ruas submersas no centro da cidade e os botes circulando no interior do Mercado Público me enchem de angústia e melancolia. Muito circulei pelo Centro, por seus sebos e livrarias (a legendária Globo ainda ocupava quase toda uma galeria na Rua da Praia na época em que comecei a faculdade). Quando ouvimos a notícia de que a água chegara à Cidade Baixa, minha mulher e eu tentamos lembrar o nome dos bares que frequentávamos naquele bairro boêmio. Jardim Elétrico, Ossip. Não sei se existem ainda. 

Nas minhas visitas mais recentes a Porto Alegre, eu me via tomado por um misto de ressentimento e nostalgia. Pois a cidade mudara nas duas décadas que passei longe dela, e nem pedira minha autorização para tanto. Eu, que nunca fui de lamentar o fim dos cinemas de rua, fiquei horrorizado com a breguice do cubo de vidro espelhado que fora erguido na Oswaldo Aranha, no lugar onde vi meus primeiros filmes em tela grande. E a construtora ainda tivera o desplante de dar a seu monstrengo o nome do falecido cinema, Baltimore! Não, esta não era mais a minha Porto Alegre.  

(A incoerência das emoções: em Santa Cecília, bairro onde vivo, vêm se erguendo prédios ainda mais monstruosos. Mas nem por isso eu reneguei São Paulo.) 

Agora que o rio Guaíba rompeu as comportas (é um lago, eu sei, mas quem é de Porto Alegre vai sempre chamá-lo de rio), eu, à distância, reencontrei a cidade em que certa vez invadi a reitoria da UFRGS (decisão estúpida), em que encontrei minha profissão (decisão ruim), em que me casei (melhor decisão de minha vida). 

Essa cidade submersa que vejo nos canais de notícia, essa cidade onde um incongruente jacaré apareceu no Menino Deus, essa cidade que se afoga e sofre, é ainda e sempre a minha cidade. 

*** 

A politização estúpida do horror, os cretinos de rede social que condenaram todos os que perderam casas e pessoas queridas (107 mortos confirmados no momento em que escrevo) por supostos pecados eleitorais, o proselitismo baixo de quem pede votos enquanto os eleitores sobem nos telhados para não morrerem afogados: misérias desse tipo são matéria costumeira desta coluna.  

Não hoje.  

Quero falar de uma qualidade humana que minha verve irônica e amarga costuma negligenciar: a solidariedade. Ao lado do esforço de bombeiros e socorristas, temos visto inúmeros voluntários fazendo o possível para salvar vidas e amainar as perdas de quem foi diretamente atingido pelas cheias. Gente de barco e jet-ski transportando pessoas ilhadas em suas casas. Jipeiros percorrendo ruas alagadas para ajudar na evacuação de hospitais. O homem que quebrou o telhado de uma casa submersa para retirar de lá o cão que estava para se afogar. E, pelo país afora, brasileiros se mobilizando para fazer doações para os desabrigados do Rio Grande do Sul. 

Nossas mesquinhas divisões, sei bem, não foram abolidas pelo teatro da união nacional montado por nossos medíocres homens públicos. Mas pelo menos neste momento de desamparo e aflição, Porto Alegre e o Rio Grande do Sul despertaram o melhor de muitos brasileiros. 

Todos vocês que ouviram o chamado, pouco importam suas afiliações ideológicas  – vocês provam que o país não precisa continuar se arrastando na lama fétida. 

 

Jerônimo Teixeira é jornalista e escritor

 

As opiniões emitidas pelos colunistas não necessariamente refletem as opiniões de O Antagonista e Crusoé

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
  1. Prezado Jerônimo, espero que toda sua família esteja bem. Sei que está impossível dizer que os gaúchos estejam bem, mesmo aqueles que não foram atingidos diretamente. Espero que o cheiro se disperse, mas que as sequelas sirvam para abrir nossos olhos sobre o que esperar dos próximos políticos eleitos.

  2. Belo texto. Não sabia que você era gaúcho. Sou catarina - como dizem por lá -, mas morei cinco anos em Porto. Sim, eles chamam "a" Zero. Estou muito triste com o que estou vendo nas televisões e nos vídeos publicados em redes sociais. Que os gaúchos se levantem prontamente. Também acho, como seu pai, q

  3. Linda crônica caro conterrâneo, também sou de Montenegro e tenho uma filha em Porto Alegre a qual não posso visitar ainda pelas estradas arrasadas que ainda não permitem.

Mais notícias
Assine agora
TOPO