Gustavo Mansur/ Palácio PiratiniO resultado de uma política omissa está expresso no drama vivido pela população de uma cidade imersa nas águas turvas do Guaíba

Mensagem das águas

O desastre que se abateu sobre o Rio Grande do Sul é uma mensagem que havia sido telegrafada há tempos, porém negada pelas autoridades
10.05.24

O desastre que se abateu sobre o Rio Grande do Sul é uma mensagem que já havia sido telegrafada há tempos, porém negada e rejeitada pelas autoridades. Os sinais de que a natureza reagiria com fúria aos erros e excessos em seu entorno estavam desenhados. Esta enchente de proporções épicas foi precedida por outras e significa um alerta para as próximas que devem chegar. Negar esta realidade é flertar com a irresponsabilidade, o risco e o perigo de perder vidas e dilacerar os pilares de uma economia sustentável.

Porto Alegre é banhada por um lago, chamado Guaíba, que recebe cinco afluentes, chamados de Gravataí, Taquari, Caí, Jacuí e Sinos. Esse lago se encaminha para a Lagoa dos Patos, que deságua no oceano. A enchente em Porto Alegre acontece na medida que o volume de água dos afluentes aumenta em razão das chuvas e a capacidade do lago atinge seu limite, transbordando para dentro da cidade. 

A falta de estrutura para evitar a crise nos leva inevitavelmente a um ponto de reflexão que vai muito além do Rio Grande do Sul. A ocupação de encostas no Rio de Janeiro, a contaminação do Rio Doce por dejetos em Minas Gerais e tantas outras ações como construção de cidades em planícies de inundação, são ações que acabam por cobrar um alto preço, na medida que o descuido e o negacionismo se tornam moeda corrente em nossas políticas públicas. 

Inundações, contudo, são os eventos naturais que mais geram danos e custam vidas pelo mundo. Os maiores riscos estão na Ásia, porém, as vítimas estão por todos os cantos do planeta. Segundo estudo do Banco Mundial, estamos falando de 4.500 ocorrências nas últimas décadas, que tiraram a vida de mais de 250 mil pessoas. A pesquisa, entretanto, traz um dado interessante, um aumento de 180% na média deste tipo de ocorrência desde 2010. Um dado que merece nossa reflexão.

Outro fato que chama a atenção é que os países mais pobres e aqueles que convivem mais de perto com a corrupção são aqueles mais impactados pelos eventos naturais, uma vez que a ausência de infraestrutura, aliada a ineficiência e obras mal-acabadas, gera consequências mais graves. Modelos educacionais ineficazes também formam líderes despreparados e forçam o êxodo dos mais capazes para países com melhores condições de vida, estudo e pesquisa, contribuindo para que os acidentes gerem ainda mais vítimas, muitas delas fatais. Infelizmente, o Brasil faz parte dessa lista.

Como se não fosse o bastante, é nessas localidades onde vemos os mais graves erros, como assoreamento de rios, frágeis construções em encostas (inclusive favelas), cidades em planícies de inundação, aterros e ausência de tratamento adequado de esgoto em cidades banhadas por rios e lagos poluídos, uma realidade que gera um perigoso desequilíbrio ambiental. Isso sem falar no despejo de rejeitos ao longo dos leitos dos rios, como já se observou no passado em cidades gaúchas.   

O impacto está longe de ser mitigado. Em condições normais, as águas devem demorar cerca de 45 dias para baixar. Enquanto isso, os problemas na saúde pública devem se multiplicar, assim como na segurança. Contam-se aos milhares os desabrigados.

O impacto econômico será brutal. Os danos sofridos por empreendimentos de grande porte devem gerar um efeito dominó, possivelmente causando a quebra de pequenas e médias empresas. O estado tem 40% da sua economia baseada no agronegócio, que contempla a perda de safras e problemas na pecuária. O escoamento da produção deverá ser uma dificuldade por um bom tempo.

O choque sobre o emprego pode ser devastador e derrubar a economia gaúcha, gerando desequilíbrio e inflação também no resto país, especialmente nos alimentos

Os gestores públicos precisam encarar o resultado de sua irresponsabilidade. A Prefeitura de Porto Alegre não investiu um real sequer em prevenção a enchentes em 2023. Até chegar a zero, o investimento para prevenção a enchentes caiu dois anos seguidos e o item chamado “melhoria no sistema contra cheias” não recebeu recursos ano passado. A mesma situação ocorre com o departamento que cuida da área de águas e esgotos, que opera atualmente com a metade dos funcionários que tinha em 2013. O resultado de uma política omissa está expresso no drama vivido pela população de uma cidade imersa nas águas turvas do Guaíba. De nada adianta culpar as chuvas quando na verdade existe falta de preparação, gestão e planejamento, elementos essenciais de uma administração eficiente, necessárias para uma cidade do porte de Porto Alegre.

Entretanto, para além dos culpados, enquanto os gaúchos ainda contam suas vítimas e resgatam sobreviventes, esta tragédia deveria servir para unir o país. Medidas resolutivas, diretas e objetivas para os desafios que ainda virão deveriam ser buscadas por meio do diálogo, longe das diferenças partidárias e ideológicas. Precisamos de mais pragmatismo e menos ideologia, longe da atual polarização, para estabelecer os pilares da reconstrução. 

Infelizmente, vemos nossos líderes aproveitando para fazer mais política com o desastre, adotando discursos baratos e batidos, falando em orçamento de guerra sem qualquer coordenação ou transparência sobre uso e aplicação dos recursos. No país da impunidade, sob a liderança de políticos altamente despreparados, porém espertos na defesa de seus interesses, estamos diante da receita ideal para o desvio e a demagogia, uma aliança perfeita para alimentar a corrupção e perpetuar o atraso.  

A mensagem recebida pela tragédia é objetiva: faz-se necessário discutir os efeitos das mudanças climáticas em vez de rejeitá-las por simples ranço ideológico e aqueles que enfrentarão as urnas este ano estão obrigados a lembrar do brutal recado recebido nesta tragédia. Ainda estamos no momento de doação e salvamento. Porém, devemos aprender com as lições deixadas pela força e volume das águas.

A reconstrução deve levar em consideração aspectos ambientais que impedem novos desastres, como evitar construir em encostas e planícies de inundação, manter a mata ciliar intacta e os rios, limpos. A enchente de 2024 deixa uma brutal mensagem. Rejeitá-la é flertar com o caos e se tornar corresponsável por possíveis tragédias futuras. Já passou do tempo de o Brasil parar de brigar com o meio-ambiente, entendendo que esta parceria é o mais importante ativo de nosso país.

 

Márcio Coimbra é CEO do Instituto Monitor da Democracia e ex-diretor da Apex.

 

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  1. Artigo excelente. Trouxe elementos fundamentais para entender toda essa tragédia anunciada. E também para olharmos para o futuro nada bom para nós, brasileiros.

  2. Imagino que nas enchentes do ano passado, nas secas que também tem assolado o Rio Grande do Sul, muitos artigos devem ter sido escritos sobre o descaso do governo na preparação das cidades brasileiras para catástrofes. O que adiantou até hoje? Será que dessa vez saímos do papel? Quero muito acreditar que sim.

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