ReproduçãoEstão criticando Transe pelo mesmo motivo que deveriam criticar Bacurau, de Kleber Mendonça Filho

O mal-estar cultural na esquerda

Trailer do filme "Transe", de Carolina Jabor e Anne Pinheiro Guimarães, suscitou reclamações até de militantes
10.05.24

A esquerda brasileira – mais ainda na cultura – tende a funcionar a partir de consensos. Ela faz um trabalho incessante de ocupação de espaços e legitimação tendo em vista a ação política. Assim, quando um conflito interno vem à tona, é porque a situação está grave, mais grave do que aparenta.

Essa semana o trailer do filme Transe, de Carolina Jabor e Anne Pinheiro Guimarães, causou certo furor no X (ex-Twitter). Foram milhares de comentários negativos sobre a estética do filme, a caracterização dos personagens, os clichês etc. Falou-se até do Caetanismo Cultural, termo que eu nunca tinha ouvido mas que faz todo sentido naquele contexto.

Alguns comentários eram divertidos: “O nome do filme é transe porque serve exatamente pra isso. Leva a pessoa na tua casa, coloca esse filme e transe, porque assistir não rola”. Outra pessoa disse: “Alguém pediu ao ChatGPT ‘um roteiro baseado em Terra em Transe, mais curto, dinâmico e adaptado ao gosto da juventude atual’”. No Youtube, um dos comentários com mais curtidas foi: “Se o objetivo era criticar a esquerda, fazendo caricatura dela, parabéns, acertaram em cheio”.

O filme trata de um trisal composto por uma moça e dois jovens que são impactados pela ascensão nas pesquisas e pela eleição de Jair Bolsonaro em 2018. Eles conversam sobre a situação política, vão a shows, interagem em passeatas. A repulsa causada pelo trailer é primeiro relacionada ao tema: a política foi tão explorada pelo cinema brasileiro que houve uma profunda saturação. Na verdade, essa saturação já era muito forte em quem não é militante de esquerda — basta ver a queda nos últimos anos do público do cinema brasileiro —, mas a situação chegou a um ponto em que os próprios militantes estão reclamando.

Outro motivo de repulsa é puramente estético: a opção pela câmera na mão e a mistura de documentário e ficção. Assim, não há muita diferença do filme (ao menos o que vemos no trailer) para Democracia em Vertigem, de Petra Costa.

E tem também o estilo dos personagens, que motivou muitos comentários depreciativos não só no trailer mas nas matérias, especialmente do portal Metrópoles. O estilo Gregório Duvivier de esquerdomacho (nome que foi muitas vezes citado nas críticas ao trailer) e o estilo da moça, Luisa Arraes, um estilo meio andrógino, com a franjinha de feminista, e as festinhas descoladas, bares e passeatas… dão um pouco nos nervos, de fato.

Aí veio a matéria da PiauíA síndrome caetanista, de Luigi Mazza, na edição de maio. A matéria – na revista que virou uma espécie de versão de luxo da antiga Caros Amigos – é bastante clara ao afirmar que foi criado um culto a Caetano Veloso e que a esquerda na cultura saturou o ambiente com a politização de tudo, até chegar ao ponto do ridículo. Culto muito bem exemplificado pela frase do escritor Valter Hugo Mãe, escrita em 2019: “Cuide de Chico Buarque e de Caetano Veloso, por favor, em qualquer cabeça sã do mundo eles representam o Deus possível”. O jornalista cita também João Vicente de Castro e Gregório Duvivier, que em algum momento se referem a Caetano como “Deus” em suas redes sociais.

Mazza lista o tédio provocado pelas repetidas manifestações políticas em eventos culturais a que esteve presente: festivais de cinema e música, no show do Caetano, desde o “Fora, Temer”, até o “Ele não”, e o “Fora, Bolsonaro” etc.

Se, para a esquerda, Bolsonaro representava o militarismo, a reação foi usar as fórmulas do passado, da cultura que se opôs à ditadura: a Tropicália, as músicas e peças teatrais de protesto. Só que faltava o vigor e a vitalidade daquela época. O esgotamento daquelas fórmulas era e é evidente.

A minha discordância com o autor é apenas a seguinte: não foi criado um culto ao redor de Caetano, foi ele próprio que criou, e quem deu forma ao cultor foi a sua esposa e produtora, Paula Lavigne. Tudo que é feito ao redor de Caetano com esse tom de culto é realizado por ela: os documentários, as homenagens, a atuação em causas sociais tendo em vista a legitimação política na esquerda.

Quando vi a reação ao trailer do filme Transe, pensei: estão criticando esse filme pelo mesmo motivo que deveriam criticar Bacurau, de Kleber Mendonça Filho. E lá no meio vi um comentário nesse sentido, dizendo que Transe é o Bacurau sudestino. Curiosamente, Mazza termina o texto citando Bacurau, dizendo que o filme é a obra mais perfeita do caetanismo.

 

Josias Teófilo é jornalista, escritor e cineasta.

 

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  1. Todas suas palavras me representam. Faz tempo que não tenho estomago para engolir essa arte "transgressora". Não suporto essa tropicália que vivem tentando reviver. Chega de Caetano, Chico Buarque, Gil etc. Gregório Duvivier? Foi a gota d'água para encerrar minha assinatura da Folha de S. Paulo há uns 6 anos atrás. Estudante universitário idolatrava Che Guevara, agora é o Hamas! dá para engolir?

  2. A máxima de "tudo é política" é insuportável e origina aberrações como esse filme. E, pior de tudo, o provável fracasso comercial não terá nenhuma consequência para os autores que, provavelmente, se financiaram com renúncia fiscal e embolsaram seus salários vitaminados direitinho, sem necessitar de sucesso nas salas de cinema para seu sustento nem para viabilizar futuros projetos

    1. Por que não publicaram meu comentário sobre essa matéria?

    2. Desconfio muito dessa esquerda chamada "chic" que lucra cim sua ideologia! Jamais ví um esquerdista de passeata e bares descolados ajudando como voluntário em hospitais ou em enchentes como ora acontece no sul do Brasil!

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