Joseph Karl Stieler via Wikimedia CommonsBeethoven, em retrato de Joseph Karl Stieler

O que é previsível não pode ser arte

Antes de fenômenos da inteligência artificial entrarem em circulação generalizada, a padronização da produção cultural já era uma realidade
23.02.24

A inteligência artificial veio para ficar e para tirar o emprego de muita gente. Dubladores, designers, copywriters, tradutores e muitos outros tipos de profissionais correm o risco de perder seus empregos. Com o desenvolvimento vertiginoso dessa tecnologia, até profissões que pareciam insubstituíveis, como fotógrafos ou videomakers, podem ser substituídas por máquinas.

Acontece que antes de a inteligência artificial entrar em circulação a padronização da produção cultural já era uma realidade. Tratemos do caso da música.

Nas sinfonias de Beethoven – que são o protótipo do gênero – cada movimento é completamente diferente do outro. Com o desenvolvimento posterior da forma sinfônica os movimentos foram ficando mais parecidos – nas sinfonias de Sibelius, por exemplo, existe um “material genético” que perpassa toda a sinfonia, do começo ao fim.

No chamado Minimalismo isso é levado ao extremo: com a repetição frequente de breves trechos com pequenas variações executados por longos períodos de tempo, tendo ritmos quase hipnóticos. A obra de Phillip Glass, Arvo Part e John Adams são exemplos de obras minimalistas.

Glass compôs a trilha do filme Koyaanisqatsi, um documentário sem entrevistas nem narração, apenas imagens da mundo natural e das cidades americanas, com o uso pioneiro de timelapse (quando a quantidade de fotogramas da filmagem é muito menor do que o normal, e produz a sensação de aceleração do tempo).

A trilha deste filme se tornou um marco e inspirou muitas outras, inclusive do próprio Glass, que tornou-se um dos mais famosos compositores de trilha sonora de cinema. O problema é que o filme e a trilha foram copiados à exaustão, tanto pelo cinema como pela publicidade.

Trilhas sonoras “minimalistas” tornaram-se um dos piores clichês do cinema. Um pianinho que toca algumas notas repetidas vezes. Um tema musical que se repete num crescendo até uma parada brusca, por exemplo.

E para completar os compositores deixaram de escrever a música manualmente e passaram a usar programas de compositor – a exceção é o compositor Marlos Nobre, que até hoje escreve a própria música à mão.

Tais programas foram evoluindo a ponto de terem presets de composição, de modo que o programa de certa forma compõe por si só. O compositor estabelece alguns parâmetros e o programa compõe.

A inteligência artificial chegou para oficializar um processo muito anterior.

De certa forma, todos os chichês já são formas de automação – bem dizia Ortega y Gasset que “os lugares comuns são os bondes do transporte intelectual”. E eles têm tomado a produção artística no cinema, na literatura, na poesia, nas artes plásticas.

Em 2019 foi feita uma composição usando inteligência artificial da décima sinfonia de Beethoven, utilizando rascunhos do compositor e a intervenção de compositores profissionais. O projeto foi coordenado por Ahmed Elgammal, professor e diretor do Laboratório de Arte e Inteligência Artificial da Universidade Rutgers, nos Estados Unidos.

A máquina utilizou-se do material já composto por Beethoven e chegou ao que seria hipoteticamente a décima sinfonia. Acontece que Beethoven não faria isso, ele comporia algo completamente novo. A criação artística faz parte do livre-arbítrio do artista, e é imprevisível.

Aqui podemos chegar a uma definição: o que é previsível não pode ser arte.

 

Josias Teófilo é cineasta, jornalista e escritor

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  1. Assino embaixo. O problema é que a previsibilidade entretém as massas, que é o objetivo das mídias, alcançar o maior número de público, então ficamos neste loop infinito. Fico com os clássicos que ainda há muito o que explorar, e ignoro as "novidades" da mídia.

  2. Está claro. A máquina não fará arte, mas uma cópia nova de algo já feito que poderá até agradar, mas não será arte nunca.

  3. Muito interessante sua análise Teófilo, e eu já venho pensando muito nisso tudo faz algum tempo. Sou designer de formação pois isso estou sempre observando os meios e os resultados das criações. Isso vale até para a música, que não é minha especialidade. Mas está difícil achar uma verdadeira criação na música que atualmente faz sucesso.

  4. Considero que a música minimalista nunca foi algo inédito, tá mais pra cópia mal feita dos mantras orientais. E a massificação generalizada das coisas começou lá atrás, com o alimento do corpo via comida industrializada, e chegou ao alimento da alma, via arte fake. E do pensamento também, pelas redes sociais.

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