Fernando França / Sindsprev (RJ)Foto: Fernando França / Sindsprev (RJ)

A farra dos supersalários

Rendimentos do funcionalismo público estouram o teto e ultrapassam 1 milhão de reais por mês
23.02.24

Pouco antes de se aposentar, em novembro do ano passado, a juíza Maria Izabel Pena Pieranti, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, recebeu um contracheque de 1.101.657 reais. O valor incluiu “direitos eventuais”, como reparação de férias não gozadas (791 mil reais) e venda de dias de repouso não usufruídos (286 mil reais). Na mesma Corte, Caio Luiz Rodrigues Romo levou 909 mil reais em maio de 2023. O holerite foi turbinado com o pagamento de férias atrasadas.

Os dois casos constam de uma planilha do Conselho Nacional de Justiça, o CNJ, criado para disciplinar e monitorar o Judiciário brasileiro. Além deles, aparecem os nomes de Zulma Edméa de Oliveira Ozório e Góes (TJMG, 790 mil reais em setembro), José Roberto Pinheiro Maia Bezerra Júnior (TJPA, 678 mil reais em dezembro), Weber Lacerda Gonçalves (TJPA, 677 mil em junho) e Iris Helena Medeiros Nogueira (TJRS, 662 mil reais em abril).

São todos exemplos de supersalários, aqueles benefícios legais que são restritos a uma casta de funcionários públicos. Com a retomada dos trabalhos do Congresso, em fevereiro, propostas de acabar com essa farra nos vencimentos voltaram à tona na discussão de uma reforma administrativa. Ministros e membros da oposição já se declararam a favor de cortar os supersalários. Mas Arthur Lira, presidente da Câmara dos Deputados, indicou que só levará o tema adiante após consenso entre os líderes partidários.

As primeiras tentativas de disciplinar os rendimentos excessivos no setor público vieram com a Constituição de 1988. O texto da Carta estabelecia que uma lei deveria fixar o limite máximo de remuneração dos servidores públicos. No ano seguinte, Fernando Collor foi eleito presidente da República fazendo propaganda de ser um “caçador de marajás”. Esse era o sentimento da época, quando o Brasil se reerguia após duas décadas de ditadura. “Foi nesse momento que o debate envolvendo o fim das mordomias no setor público ganhou a imprensa, mas as medidas que foram tomadas não eliminaram os supersalários”, diz Vera Monteiro, vice-presidente do Conselho da Republica.org e professora de direito administrativo na Fundação Getúlio Vargas.

Dez anos depois da promulgação da Constituição, uma emenda criou a figura do “subsídio”, cujo objetivo era limitar a remuneração dos servidores à renda dos ministros do Supremo Tribunal Federal, o STF, impedindo que os salários fossem inflacionados com parcelas extras. Mas a iniciativa não surtiu efeito. Em 2005, uma nova emenda constitucional decretou que “as parcelas de caráter indenizatório” não seriam computadas no teto salarial. Foi assim que se criou a figura dos penduricalhos — benefícios diversos que podem furar o teto, desprezando a ideia original dos constituintes.

Com a permissão legal, o Brasil tornou-se uma fábrica de penduricalhos no setor público. “Até 2015, nós vivenciamos uma avalanche de legislações trazendo os benefícios mais diversos, como auxílio-alimentação, auxílio-paletó e pagamento de férias não gozadas”, diz Tadeu Barros, diretor-presidente do Centro de Liderança Pública, CLP. Esse último benefício, o das férias não gozadas, é o que responde pelos maiores valores encontrados na planilha do CNJ. Isso porque, como os magistrados têm direito a 60 dias de férias por ano, eles não tiram o período completo e vendem os dias restantes, acumulando valores na conta, a qual é paga pouco antes da aposentadoria, de uma só vez.

No final do ano passado, o CLP fez o cálculo de quanto o governo gasta pagando os valores que estouram o salário máximo, que agora está em 44 mil reais. O excedente, por ano, chega a 3,9 bilhões de reais. É uma dinheirama superior ao orçamento do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima deste ano. O estudo do CLP também constatou que, embora esse tipo de benefício gere uma ojeriza contra todo o funcionalismo público, uma parcela ínfima tem direito a ele. “Somente 0,23% dos funcionários públicos têm rendimentos superiores ao teto. Trata-se, portanto, de uma casta muito privilegiada”, diz Barros.

Um movimento importante para regulamentar os supersalários foi feito pelo deputado Rubens Bueno, do Cidadania do Paraná, que apresentou um projeto de lei em 2016. Foram necessários mais quatro anos para que o tema fosse votado na Câmara. No Senado, o projeto está há dois anos e meio na gaveta. “Se tivesse sido aprovado logo no começo, esse projeto de lei já teria evitado que 10 bilhões de reais fossem pelo ralo para pagar supersalários”, diz Tadeu Barros, do CLP.

Durante o governo de Jair Bolsonaro, uma Proposta de Emenda Constitucional, PEC, foi apresentada para bloquear os supersalários. Contudo, a medida isentava juízes e membros do Ministério Público. Poupar o Judiciário do sacrifício não faria sentido, pois é justamente esse o Poder que mais concentra auxílios diversos e remunerações elevadas. Segundo dados do Atlas do Estado Brasileiro, a remuneração média do Judiciário em 1995 (7,6 mil reais) estava pouco acima da do Legislativo (6,9 mil reais) e consideravelmente acima da do Executivo (2,6 mil reais). A partir desse momento, os rendimentos do Judiciário se descolaram dos demais. Em 2019, a remuneração média do Judiciário era de 12 mil reais — o dobro da do Legislativo (6 mil reais) e o triplo da do Executivo (4 mil reais).

No ano passado, o assunto voltou à tona com declarações do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e da ministra de Gestão e Inovação, Esther Dweck. O interesse oficial na questão tem diversos motivos. Em primeiro lugar, a equipe econômica está preocupada em cortar gastos para reduzir o déficit fiscal recorde. Em segundo lugar, o governo poderia usar esse tema, que tem amplo apoio popular, para compensar a perda de aprovação em outras áreas, como segurança pública e diplomacia (leia a reportagem “Lula contra o mundo livre”, nesta edição). Mas o projeto avança a passos lentos. Mesmo que integrantes do governo petista falem em cortar benefícios, a resistência vem principalmente dos sindicatos ligados à esquerda e que fazem parte da base de sustentação do PT.

Para que uma reforma como essa dê certo, será preciso que todos ou quase todos os penduricalhos fiquem abaixo do teto, sem muitas exceções. Mas o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, marotamente tem manobrado para compensar isso de outra maneira. Ele está operando nos bastidores para aprovar a PEC do Quinquênio, um benefício extinto em 2006. O quinquênio concede um adicional automático de 5% do salário para juízes, procuradores e defensores públicos, para cada cinco anos de trabalho, independente do desempenho. A verba ficaria de fora do teto constitucional e teria um custo adicional de 4,5 bilhões de reais — mais do que a economia que poderia ser obtida com o fim dos supersalários. Ao trocar alhos por bugalhos, Pacheco quer manter as coisas como estão, com um grupo seleto de servidores ganhando muito mais do que o restante da população, mesmo sem uma justificativa plausível para tanto.

É preciso que tudo mude para tudo seguir como está, para desânimo dos brasileiros que pagam essa conta. “A ideia de que o Estado é um instrumento para promover o progresso da comunidade nunca vingou no Brasil”, diz o antropólogo Roberto Damatta, autor do livro Você sabe com quem está falando?. “Em vez disso, o que temos é a percepção de que o Estado deve ser usado para proveito próprio. Os supersalários são um sintoma disso, do nosso patrimonialismo.”

Crusoé pediu informações aos tribunais citados nesta reportagem sobre os supersalários. Seguem as respostas:

Sobre a remuneração dos magistrados, o Poder Judiciário do Estado do Rio de Janeiro esclarece que todos os pagamentos são feitos de acordo com a legislação vigente e decisões do Supremo Tribunal Federal. Ressaltamos ainda que não podemos informar detalhes sobre os contracheques em razão da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (Lei 13.709/2028). Acrescentamos ainda que, em decorrência de aposentadoria, é possível o recebimento de valores correspondentes a férias e licenças não gozadas e dias de plantão não usufruídos quando em atividade, em consonância com os artigos 45, § 7º e 49, § único da Lei Estadual 5.535/2009 e com a Resolução TJ/OE 12/2015. Em relação aos valores citados, informamos que se referem a pecúnia de férias, com o respectivo terço constitucional, dias de licença especial e de de plantão não usufruídos quando em atividade, pagos em parcela única na aposentadoria. Por se tratar de parcela indenizatória não é considerada para aplicação do Teto Remuneratório (Subsídio do Ministro do STF, R$ 41.650,92)” – Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.

O Tribunal de Justiça do Pará (TJPA) informa que os pagamentos de valores retroativos são relativos a direitos pretéritos de magistrados ativos e inativos relacionados à indenização de licença-prêmio e ao adicional de tempo de serviço. São passivos retroativos reconhecidos pelo Conselho Nacional de Justiça, bem como por outros Tribunais Pátrios. O TJPA informa que o pagamento retroativo é pontual, sem caráter permanente, decorrente de esforço institucional de mitigar passivos existentes em direitos reconhecidos, com observância à disponibilidade orçamentária-financeira do Poder Judiciário. Todos os subsídios se submetem ao teto constitucional” – Tribunal de Justiça do Pará.

Informamos que não se trata de subsídio mensal, mas sim de  valores referentes ao pagamento  de licenças-prêmio não gozadas, ou seja, direito adquirido pela magistrada. O pagamento foi de natureza indenizatória, não tem qualquer relação com a remuneração mensal (subsídios), e não está submetido  ao teto constitucional. A Desembargadora Iris Helena Medeiros Nogueira, ex-Presidente do TJ, não irá se pronunciar sobre o tema” – Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.

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  1. A ridícula e rebebdadissina 167 vezes CF de 1988 só é cumprida para massacrar Manés como diria Alexandre, o Grande maior conquistador da história ... um brasileiro será maior que ele? Nem duvidem e é prá já.

  2. Como diz Fernão Lara Mesquita: " O Favelão Nacional trabalha para pagar impostos para sustentar os Palácios de Versailles de Brasília"

    1. Muito boa essa frase Custódio!! Retrata bem a diferença de classes no Brasil!

  3. Por aí se vê como a classe pobre está sendo lesada. É um disparate contra o povo. Isso tem que mudar urgentemente. Que se inicie já a reforma administrativa.

  4. A MINHA REVOLTA É GRANDE MAS INÓCUA. NADA POSSO FAZER A NÃO SER ESPERAR ESSE JUDICIÁRIO CORROMPIDO. ME APOSENTEI EM 2011(SOU SERVIDOR PÚBLICO ESTADUAL) E HÁ 13 (TREZE) ANOS ESTOU ESPERANDO O PAGAMENTO DE SEIS PERÍODOS DE FÉRIAS NÃO GOZADAS ANTES DA APOSENTADORIA MAS OS CANALHAS TUDO RECEBEM ANTES MESMO DE SE APOSENTAR. CANALHADA.

  5. A assim que e bom de entender. A casta do funcionalismo e de 0,23%, no caso o Judiciário. Não como tenta transparecer um site, quando fala " o funcionalismo", não gosta de dizer os nomes. E Rodrigo Pacheco, o todo poderoso do senado, querendo fazer agrado para seus pares, já que o mesmo e advogado também.

  6. A função pública, especialmente a elite dele, é a principal máquina de transferência de renda do pobre para a elite. É um autentico roube descarado ao povo, especialmente o trabalhador mais humilde, que sequer vê retorno do suado dinheiro que o Estado lhe extorque. Mas nada mudará, o Brasil sempre foi assim e seguirá desta forma, basta ver o oportuno exemplo dado pela PEC do Quinquênio já sendo manobrada para tudo mudar de forma a tudo permanecer como está.

  7. Essa é a maneira mais legal de se cometer um atentado ao espírito republicano e democrático. "Todos são iguais perante à lei; mas, alguns são mais iguais que outros."

  8. Torço para que o povo mineiro, gente de pouca conversa e de muita meditação, conceda ao Pacheco em suas pretensões eleitorais a mesma resposta oferecida à pretensiosa Dilma Roussef…

    1. Com certeza os mineiros concederão ao Pacheco o mesmo que destinaram a Dilma.

  9. Só uma revolução neste país pra mudar esse estado de coisa. Mas pra quem poderia mudar essas aberrações está tudo bem, obrigado.

  10. Pacheco engavetou a lei referente aos super salários e agora quer ressuscitar os quinquênios. Com tanta subserviência ao judiciário, agora contraditoriamente quer por freio nos abusos do STF.

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