Yascha Mounk / DivulgaçãoA sombra do crime sexual agora pesa sobre a reputação de Mounk, sejam falsas ou verdadeiras as alegações

Editores de estupros

Uma revista americana cortou Yascha Mounk de seu quadro de colaboradores porque ele foi acusado de um crime sexual. Neste caso, só há uma certeza: alguma injustiça foi cometida
23.02.24

Yascha Mounk foi acusado de estupro. A notícia me entristece. Recentemente entrevistado nesta revista por Caio Mattos, o cientista político da Universidade Johns Hopkins tem servido de referência para alguns dos meus artigos mais recentes. Suas análises sobre o equívoco da racialização do conflito entre Israel e Palestina ou sobre as contradições do que ele chama de “síntese identitária” não saem invalidadas pelo escândalo. No entanto, a sombra do crime sexual agora pesa sobre a reputação de Mounk, sejam falsas ou verdadeiras as alegações contra ele.

Não adianta invocar o credo segundo o qual as falhas de um autor não comprometem a qualidade de sua obra. Tendo a concordar com essa ideia, mas acho que não há quem a abrace sem traçar demarcações: a partir daqui já não dá mais para acompanhar o autor. Estupro e abuso sexual de crianças costumam ser colocados do lado de lá dessa linha vermelha.

Qualquer opinião, especulação ou palpite sobre o caso será irresponsável: não há como saber o que aconteceu de fato entre Mounk e a mulher que o acusa, Celeste Marcus. A história do estupro, que teria ocorrido em junho de 2021, foi compartilhada por Celeste em um ensaio na revista on-line Liberties, da qual ela é editora executiva (ironicamente, o editor-chefe da revista, Leon Wieseltier, foi acusado de assédio sexual no passado, quando comandava a The New Republic). Publicado em janeiro, o texto não trazia o nome do suposto estuprador.

Celeste alega que não denunciou o agressor à polícia, pois isso só iria agravar o sofrimento dela – atitude que é muito compreensível em crimes sexuais. Mas então, passados dois anos e meio do ocorrido, ela decidiu encaminhar uma denúncia não à Justiça, mas a uma revista na qual Mounk era um colaborador frequente, The Atlantic.

A acusação foi encaminhada a dois editores, em mensagem privada. Um deles, Jeffrey Goldberg, garantiu que levaria a denúncia muito a sério e que examinaria o caso. Como depois disso passaram-se semanas sem uma nova resposta, a acusadora foi à arena pública hoje conhecida como X para protestar contra o silêncio de Goldberg. “Eu não serei estuprada com impunidade”, tuitou ela, no início do mês. No dia seguinte, a revista emitiu um comunicado informando que suas relações com Yascha Mounk estavam suspensas.

Não é a primeira vez que um caso de estupro é submetido ao exame não de um perito criminal ou juiz, mas dos editores do acusado. Em 2021, quando a W.W. Norton estava para publicar a biografia de Philip Roth escrita por Blake Bailey, uma carta anônima chegou à editora detalhando um estupro que o biógrafo teria cometido seis anos antes (depois se soube que a autora era Valentina Rice, que também trabalha na indústria editorial). O livro foi publicado mesmo assim, mas o caso acabou vindo à tona, junto com uma série de acusações detalhadas de estupro e assédio de ex-alunas de Bailey. A Norton acabou recolhendo a obra das livrarias.

Por mais de dez anos, trabalhei como editor em jornal e revista. Ainda hoje, na condição de jornalista autônomo, faço meus bicos na área. Já editei textos de centenas de autores – jornalistas, acadêmicos e escritores tarimbados, e também repórteres iniciantes. Quero crer que sou razoavelmente competente, ou não seguiriam contratando meus serviços. E com toda essa experiência, digo que não saberia como agir se chegasse a mim a denúncia de que um colaborador do veículo em que trabalho cometeu estupro.

Creio que recomendaria que a suposta vítima procurasse as autoridades ditas competentes, pois qualquer decisão sobre o caso estaria além das minhas funções e das minhas qualificações. Ao agir assim, correria o risco de ver minha cautela exposta como covardia nas redes sociais. Mas os editores de The Atlantic vêm sendo acusados de covardia por ter tomado a atitude oposta, dispensando um de seus melhores colaboradores por causa de uma acusação não fundamentada. Não há para onde correr.

Tenho uma hipótese sobre a dinâmica dos casos em que Mounk e Bailey foram implicados, e sobre a razão do alegado crime ter parado no escaninho de um editor. Estupro é um crime abjeto que, com assombrosa frequência, sai impune. Há mulheres que levantam denúncias falsas, sim, mas parecem ser bem mais numerosos os casos em que vítimas reais são desqualificadas por policiais ou juízes. No Brasil, já ouvimos casos de leniência do Judiciário até com estupradores de meninas – pois se tem “novinha” por aí que parece mulher feita… Mesmo em países mais civilizados, como os Estados Unidos, os índices de resolução de casos de estupro são baixos (Celeste Marcus postou no X uma matéria da The Atlantic, de 2019, sobre o alto número de kits de estupro – usados para coletar evidências forenses no corpo da vítima – que foram arquivados no país sem serem examinados: 400 mil).

Fracassando a justiça formal, o recurso hoje é o justiçamento pela publicidade nas redes sociais. Só que a geleia geral das redes carece de centro, de critério, de autoridade. E o editor, esse dinossauro, ainda conserva um resquício do prestígio que tinha ao tempo em que as pessoas liam livros e jornais. Acioná-lo para silenciar, anular o suposto agressor sexual talvez funcione como um sucedâneo da quase sempre improdutiva ação no Judiciário. Ou pelo menos pode parecer assim para gente que trabalha no meio, como Celeste Marcus e Valentina Rice.

No entanto, nós, editores, labutamos sobre palavras, ideias, abstrações, ficções. Um ofício de ilusões só pode oferecer uma justiça ilusória. Se é verdade que Celeste Marcus sofreu estupro, o crime permanecerá impune. Se não é verdade, foi o editor de The Atlantic quem cometeu uma injustiça.

 

Jerônimo Teixeira é jornalista e escritor

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  1. Um dilema. Se censura, será criticado. Se não censura, também. Mudando de assunto. Leio os três principais jornais do país: Folha, Estadão e Globo. Na Folha, o nível dos textos dos colunistas está cada vez pior. Leio a Crusoé também - não só - pela qualidade dos textos. E não perco suas colunas. É isso.

  2. 3- Se há setor da sociedade que não se pode "democratizar" é a justiça. É péssima a ideia de deixar à opinião pública a condenação ou absolvição de alguém simplesmente pela justiça ser falha ou lenta. Que se trabalhe sobre a justiça, não que se permita que siga inoperante e se permita que a injustiça siga rampante, pela falha atuação da justiça, seja pela arbitrariedade do julgamento em praça pública.

  3. 1- ninguém deve ser executado antes de julgado, mesmo que figurativamente. Isso pode parecer leniência com o crime, mas é um compasso de espera para evitar injustiças; 2- a obra não deve ser censurada, caberá ao consumidor da obra avaliar se o crime do autor interfere o suficiente com o seu desfrute da sua obra e ao editor avaliar se é ainda viável financeiramente publicá-la;

  4. Acusar sem provas nunca deve aceitável. Um dos princípios fundamentais do Direito é que é preferível soltar um culpado do que prender um inocente.

  5. É, assim como linchamentos (e muitas vezes da pessoa errada) ocorrem por inação de autoridades. Muito triste. Lembrei de Roman Polanski, Michael Jackson…

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