Foto: Ricardo Stuckert / PRO secretário de Estado americano Antony Blinken, com Lula e Celso Amorim

O chanceler-que-é e o chanceler-que-está

Fica feio chamar de ladrão a vítima de um assalto, e ainda ser elogiado em público justamente pelo assaltante
23.02.24

País tropical abençoado por Deus e bonito por natureza, o Brasil conta com a bênção extra de ter dois chanceleres: o “chanceler-que-é” e o “chanceler-que-está”. Cabe ao “chanceler-que-está” o serviço importante de pilotar, já não digo a nau, mas o caminhão da diplomacia; e cabe ao “chanceler-que-é” o serviço fundamental, metafísico, de filosofar acerca dos rumos do caminhão, de fornecer as justificativas teóricas para as estradas que o caminhão – a Lusitana diplomática – percorre e os comboios em que toma parte. Também cabe a ele acionar o extintor de incêndio toda vez que o caminhão, acidentado nesses caminhos filosóficos, acaba pegando fogo.

Assim foi no caso da fala recente e incandescente do mais sacrossanto de todos os homens a respeito de Israel. Fala que, vamos admitir: pegou meio mal. Fala que não foi, como diria a própria turma do caminhão diplomático, das mais felizes, das mais inspiradas, das mais oportunas. Fica feio, convenhamos, você chamar de ladrão a vítima de um assalto, ou chamar de espancador um camarada que apanhou. E ainda ser elogiado em público justamente pelo assaltante, pelo espancador daquele camarada. Não, não pegou nada bem.

Criado pois o incêndio, coube ao chanceler-que-é aparecer com o extintor filosófico e vir a público tentar consertar a situação (que, verdade seja dita, parece que o mais sacrossanto dos homens não queria ver consertada; para ele, pelo visto, tá tudo certo, não tem problema nenhum para consertar). E lá se foi o chanceler-que-é enfrentar o auditório cheio dos que queriam explicação. Foi quando surgiu outro problema.

Acontece que, por mais colossal que seja do ponto de vista intelectual, por maior Golias ou Gog do espírito que seja, o chanceler-que-é não é, como direi, um campeão da verticalidade. Sua estatura física não ombreia com seu gigantismo intelectual. Ele é, pardon my french, baixinho. O rei Pepino o chamaria de Semibreve. Ou de Brevíssimo. Brevíssimo Colosso. Enfim, ele é um tampinha. E, por ser assim, não alcançava o microfone.

Ele pediu um banquinho. Não tinha banquinho. Ele pediu então uma cadeira. Não tinha cadeira sobrando. Ele pediu uma escadinha. Não tinha escadinha. Ele pediu um pufe. Nada de pufe. Mesinha de boteco, talvez…? Nah. Cadeira de dar almoço para bebê? Não. Um rapaz forte que o soerguesse? Ô, chanceler, que é isso, esse tempo já foi. Então alguém apareceu com um pula-pula. Como a diplomacia é a arte de fazer muito com quase nada, e como a plateia visivelmente se impacientava, ele aceitou o pula-pula. Montou nele, pulou e subiu:

— Caros amigos.

Desceu. Pulou de novo.

— Temos que deixar claro…

Desceu. Pulou.

— …que as coisas não são…

Desceu. Pulou.

— …o que parecem. Na verdade…

Para não cansar o amigo do mesmo jeito que se cansaram os pescoços dos presentes, passo a resumir: na verdade, o que parece ruim foi bom. É certo que tem muita gente decepcionada com o que disse o nosso grande líder, é certo que tem muita gente xingando, falando mal e tacando pedra, mas o que pouca gente percebeu é que, por trás de tudo aquilo que ele disse, reluz um bem maior e avulta uma verdade mais bonita, que é a seguinte.

Mas não deu tempo dele mostrar qual o bem maior nem qual a verdade mais bonita: foi nessa hora que o pula-pula quebrou, o chanceler-que-é caiu, torceu o tornozelo, amassou o paletó, perdeu os óculos, desgrenhou a barba, enfim: estabacou-se. O Brevíssimo Colosso foi levado para o hospital, onde passou um dia em observação e foi liberado para repouso sem dar outras declarações.

A turma segue esperando para saber o que tudo isso teve de bom. Porque até agora, tudo, incluindo a queda do pula-pula, tá parecendo bem ruim.

* * *

Um dos bordões que o mais sacrossanto dos homens tornou populares foi o “nunca antes na história desse (sic) país”. O bordão ficou popular porque a sequência de coisas “nunca antes” acontecidas que aconteceram depois que ele chegou lá foi mesmo prodigiosa. Enumerá-las seria ocioso, senão mesmo perigoso, mas não podemos deixar de notar que, afinal, nunca antes na história um governante brasileiro tinha sido declarado persona non grata por nenhuma nação estrangeira. Agora aconteceu, e temos um ineditismo a menos: é bom saber que o sacrossantíssimo não perdeu seu talento de derrubar tabus a pontapés – eu ia dizer “a coices”, mas meu caminhão diplomático ainda está rodando direitinho.

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
  1. Excelente texto, os personagens realmente seriam cômicos se não fossem trágicos. Pobre Brasil, pobre diplomacia que vou Rui Barbosa.

Mais notícias
Assine agora
TOPO