Casa Rosada via Wikimedia Commons

Javier Milei de Oliveira Tanzi alcança o superávit

Durante os anos 80, dois economistas, o italiano Vito Tanzi e o argentino Júlio Oliveira, se debruçaram sobre o papel da inflação nas contas públicas. Milei sabe bem disso. E faz bom uso
23.02.24

Javier Milei é economista por formação, de uma vertente Austríaca, a famosa escola ligada a um dos pais da economia moderna, Carl Menger.

Você pode achar que este é um fator desprezível, afinal, o Brasil teve apenas dois presidentes economistas: Dilma Rousseff e Fernando Collor. Mas, de fato, na Argentina, o caso parece ser o contrário.

Milei tem uma profunda base ideológica e teórica na economia, o que o distancia de políticos eleitos que precisam tomar para si ideias alheias ou consultar um posto Ipiranga. O resultado disso é que a tomada de decisões e o alinhamento junto a seus ministros tende a ser muito mais rápido.

Ao mesmo tempo, Javier Milei não possui experiência prática, como seu ídolo Donald Trump, que focou toda sua presidência em impor um ritmo de negociações, com métodos não tão ortodoxos, que lhe deu fama. Para compensar, Milei criou uma persona (neste caso grata), que cativa o eleitorado. Trata-se de algo útil, afinal, o remédio que ele propõe é amargo.

Em seus dois primeiros meses, Milei apresentou centenas de propostas, todas condensadas em único projeto que agora enfrenta o Congresso (ao que se sabe, até o momento Milei ainda não acusou Cecília Moreau, a presidente da Câmara, de não deixá-lo trabalhar. Um avanço).

Mas há um campo no qual Milei pode agir sem depender do Congresso. Possivelmente o campo mais relevante em todo seu projeto de ajuste: a moeda.

A moeda é, em essência, um instrumento com três objetivos: ser um meio de troca, uma reserva de valor e uma unidade de conta. Mas com um ingrediente especial: ela é usada para pagar impostos. Não fosse este ingrediente, os argentinos muito possivelmente usariam com ainda mais frequência sua própria moeda (o dólar), em vez da moeda do governo (o peso).

Milei sabe do papel da moeda, que possui importância vital em toda teoria Austríaca de economia. E sabe também usá-la.

Isto é o que foi demonstrado nestes primeiros meses. Em janeiro, o governo obteve seu primeiro superávit mensal em mais de 12 anos.

E o motivo não chega a ser estranho aos brasileiros.

Se você puxar pela memória, deve lembrar que em 2021 mesmo estados tradicionalmente falidos, como Rio Grande do Sul, Minas Gerais e Rio de Janeiro, fecharam as contas no azul. No mesmo período, a União reduziu drasticamente seu déficit, além de chegar a um superávit em 2022.

Olhando para o caso brasileiro, é possível entender o que Milei fez: os salários (que respondem por 55% dos gastos dos estados por aqui), foram congelados em 2020. No ano seguinte, permaneciam congelados, enquanto a arrecadação explodiu por conta da alta do câmbio (40%), e do preço do barril de petróleo.

Em 2019, combustíveis eram 10% da arrecadação dos estados. Já em 2021, eram 20%. Os combustíveis dobraram de peso, mesmo com o PIB crescendo 16% nominais (10.5% de inflação + 5% de alta real).

O superávit de Milei em janeiro ocorre exatamente sob essa premissa. Como reportado aqui na Crusoé, a arrecadação de impostos sobre exportações cresceu 900% entre janeiro de 2023 e janeiro de 2024. No mesmo período, impostos sobre importação subiram 400% e o imposto sobre consumo subiu 300%.

Na média, a arrecadação cresceu seis vezes. E os gastos subiram menos do que a inflação. Resultado? Superávit.

Em economia, o nome deste evento é o chamado “Efeito Tanzi às avessas”. Faz-se referencia ao estudo do economista italiano Vito Tanzi que aponta que a distância entre o fato gerador de um tributo e a data de pagamento do tributo implica uma perda de arrecadação do governo, quando da existência de uma inflação elevada.

Para ficar em um exemplo simples, suponha que você vendeu 100 reais de um produto no dia 2 de fevereiro, tendo de pagar 15% de imposto no Simples no dia 15 de março. Agora suponha que nesse período a inflação tenha sido de 20%. Você está vendendo hoje o produto a 120 reais, mas pagando 15 reais em imposto, o que por sua vez é algo como 12.5% de tributação. Ou seja: o governo perdeu arrecadação.

No efeito Tanzi às avessas, ocorre o oposto. A alta de preços, mesmo com alíquotas iguais, eleva a arrecadação. Foi o que ocorreu no Brasil e é o que ocorre hoje na Argentina.

O grande dilema colocado neste ajuste, porém, está no fato de que ele é possivelmente a maior imoralidade que um governo pode fazer. É pior do que corrupção e quase tão ruim quanto a ineficiência (cujo preço é invisível e cobrado por anos a fio).

É este o dilema, por exemplo, que enfrentamos na tabela do Imposto de Renda. A tabela não é reajustada corretamente, o que faz com que pessoas que ganhem pouco, passem a pagar impostos apenas pelo aumento dos valores nominais de salários. Essa tabela, por exemplo, não foi reajustada durante os 6 anos de ajuste fiscal dos governos Temer e Bolsonaro, e muito provavelmente não será reajustada integralmente no governo Lula.

Mas de volta a Argentina, o dilema posto por Milei está no fato de que: para reduzir o efeito deste ajuste via inflação, é preciso que o Congresso aprove as medidas reais de ajuste.

Neste sentido, o congelamento de pensões e fim de subsídios será mantido até que os ajustes reais, que permitam ao governo ter superávit pelo crescimento da economia, não pela alta da inflação, sejam aprovados.

É uma aposta arriscada, já que a inflação afeta desproporcionalmente mais os mais pobres. A pobreza, como se viu nos dados de 2023, chegou a um recorde na Argentina.

E é aí que entra o atenuante do caso Milei. Se promover o ajuste possui um custo elevado, não promover possui um custo mais elevado ainda.

Volte algumas décadas no Brasil e você verá que nos tornamos o país com pior hiperinflação do mundo em tempos de paz, justamente por criar um mecanismo que “corrigia” a defasagem monetária. O resultado? A pobreza aumentou no Brasil dos anos 1960 até o meio dos anos 1990, mesmo com crescimento econômico.

Manter uma situação ruim por meio de microajustes significa prolongar o sofrimento.

Dito isso, é provável que você se depare cada vez mais com notícias sobre a “tragédia” argentina. A boa articulação de sindicatos, que na Argentina são donos de parte do orçamento público, bem pior do que aqui, fará com que a missão de Milei se torne um pesadelo constante.

Mas, como você já deve saber, a cura do problema depende de tomar o remédio, mesmo que amargo.

Ainda serão muitos meses (ou mais de ano), até sinais realistas de melhora. Neste momento, porém, o que temos são demonstrações de força em um cabo de guerra entre um governo no qual “o déficit zero não se negocia”, e sindicatos. Será assim ao longo de todo 2024. Até agora, entretanto, parece que Milei está com a bola dominada no meio campo.

 

Felipe Hermes é jornalista

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  1. Situações desesperadoras como a atual argentina, só se supera com uma política responsável prolongada no tempo que só será eficaz se partir de um acordo de estado entre situação e oposição. Países como os nossos, onde responsabilidade é palavra que não se aplica e apenas se pensa na próxima eleição, a maioria das reformas são torpedeadas na próxima eleição e descartadas no governo seguinte, voltando-se ao ponto de crise inicial.

  2. O texto levou-me a um sonho talvez ainda não muito vislumbrado para 2026 no Planalto… familiaridade no manejo da moeda tem Roberto Campos Neto e origem acadêmica e familiar de primeiríssima ordem, também! Tampouco é político carreirista… Quem sabe vai ser o cara no leme do Brasil?

  3. Na riquíssima Israel a moeda é o Shekel bem que o Millei podia implantar o Merdel de vez na finada Suiça americana ... nós somos eles amanhã? Toc, toc, toc ... affe !!!

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